Leio na edição da quinta-feira 4 do jornal Valor Econômico um artigo de Anders Aslund, economista sênior do Peterson Institute. Aslund trata da assim chamada "crise das dívidas soberanas" e lança uma diatribe contra as políticas econômicas que prevaleceram nas democracias ocidentais ao longo das últimas décadas.

Um raciocínio escabroso em sua simplicidade. Aslund parece imaginar que as políticas econômicas se desenvolvem em um ambiente a-histórico, movendo-se entre duas abstrações: a racionalidade dos economistas e o populismo das urnas. O economista americano reproduz a obsessão dos conservadores de todos os tempos e lugares com o "vício" populista dos governos social-democratas do pós-guerra.

Prêmio Nobel de Economia em 1986, James Buchanan empreendeu a crítica mais ácida e claramente hostil ao que se convencionou chamar de "era keynesiana". Buchanan, de forma quase profética, não hesitou em afirmar que as democracias ocidentais enfrentariam déficits e dívidas insustentáveis nas últimas décadas do século XX. Ele atribui essa caminhada em relação aos déficits e às dívidas à baixa resistência dos governos às demandas dos eleitores e dos grupos de interesses.

Ironicamente, foram as políticas "neoliberais" de Reagan, Thatcher & cia. que, a pretexto de reduzir o papel do Estado na economia, impulsionaram os déficits e as dívidas para limites insustentáveis. Nos Estados Unidos entrou em voga a "economia da oferta" e sua filha dileta, a curva de Laffer, que preconizavam a redução de impostos para os ricos "poupadores" e empresas. Assim falavam os adeptos da supply side economics: os sistemas de tributação progressiva da renda desataram o desincentivo à produção e à poupança geradora de novo investimento. A macroeconomia de Reagan defendia a tese do "gotejamento" (trickle down): as camadas trabalhadoras e os governos receberiam os benefícios da riqueza acumulada livremente pelos abonados empreendedores sob a forma de salários reais crescentes e aumento das receitas fiscais. Mas desde os anos 1980, a economia americana presenciou outra realidade à sombra da globalização.

À exceção dos anos 1990, o período em que se desenvolveu a "bolha da internet", a hipótese do trickle down não entregou o prometido. A migração da grande empresa para as regiões de baixos salários, a desregulamentação financeira e a prodigalidade- de isenções e favores fiscais para as empresas e para as camadas endinheiradas não promoveram a esperada elevação da taxa de investimento no território americano e, ao mesmo tempo, produziram a estagnação dos rendimentos da classe média para baixo, a persistência dos déficits orçamentários e o crescimento do endividamento público e privado. A procissão de desenganos foi acompanhada da ampliação dos déficits em conta corrente e da transição dos Estados Unidos de país credor para devedor.

No primeiro trimestre de 2007 o estoque total de endividamento do setor não financeiro nos Estados Unidos chegou a mais de 35 trilhões de dólares, ou seja, mais do que o dobro do PIB. Esta cifra inclui, além do endividamento privado – sobretudo as famílias -, o débito público total, federal, estadual e municipal e o passivo financeiro das agências públicas encarregadas de bancar o financiamento da aquisição da casa própria. Mais impressionante foi o crescimento da dívida intrafinanceira: às vésperas da crise, o endividamento entre as instituições financeiras chegou a 120% do PIB, fruto das imprudências da alavancagem e da criatividade das inovações engendradas pelos gênios da finança.

A dívida total cresceu seis vezes mais do que o PIB, com uma participação crescente dos governos federal, estadual e municipal. As grandes corporações trataram de reduzir seu ritmo de endividamento buscando a rápida "desalavancagem" para estabilizar a relação dívida/patrimônio líquido. As famílias, no entanto, não se atemorizaram, assumindo novos compromissos ou rolando os antigos a uma velocidade ainda elevada. Assim, a dívida das famílias saltou para 130% da renda disponível.

As famílias norte-americanas empreenderam uma "fuga para frente", que culminou com o "estouro" da bolha e a reversão do efeito riqueza decorrente da uma queda dos preços dos imóveis.

Restou ao governo arcar com déficits fiscais graúdos produzidos por gastos rígidos e receitas cadentes, para não falar do esforço para manter os bancos pecadores à tona. Tudo isso para enfrentar uma recuperação lenta, insegura, com ameaças de recaída na recessão.

Lá vem ele: "Como foi que os governos e as populações conseguiram aceitar essas dívidas enormes e ainda recomendar estímulos fiscais adicionais. Muitos gastos públicos e déficits orçamentários não têm justificativa, a não ser o populismo e o grande perdedor da crise vem sendo a social-democracia europeia, a equivalência política da economia keynesiana".

 
Fonte: Carta Capital / Luiz Gonzaga Belluzzo