Foram muitas as reações das elites mundiais ao colapso dos mercados financeiros. Todas com o mesmo tom de surpresa em relação à súbita falência da confiança nas instituições e nos instrumentos financeiros que movimentaram, com tanto vigor e exuberância, o frenesi dos capitais desenfreados nas últimas décadas.
Sua Majestade, a Rainha Elizabeth II do Reino Unido, em visita a London School of Economics, perguntou por que não fora alertada sobre eventos tão perturbadores. Por sua vez, Sua Excelência, o primeiro-ministro de Itália, com menos elegância, mandou a OCDE calar-se em suas previsões sobre a queda do PIB em 2009, pois que também não haviam previsto a iminência da crise. O ex- presidente do Federal Reserve, o banco central dos EUA, senhor Alan Greenspan, revelou-se em estado de estupor com a calamitosa falha dos mecanismos de autorregulação dos mercados.
A verdade é que os alertas não foram poucos e realizados por economistas de alta estirpe. O mesmo Greenspan lançou o anátema da exuberância irracional, talvez acreditando demais em sua capacidade de influenciar as expectativas racionais de uma turba furiosa na busca de bônus de performance. O economista Nouriel Roubini, assíduo frequentador do Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça, ganhou o apelido de Mr. Doom, Senhor Calamidade, por suas reiteradas previsões de que o cassino iria desmoronar. A lista internacional e doméstica de analistas preocupados com a desregulação dos mercados financeiros e de capitais é longa. O fato é que a turma que diz que a ressaca será forte no dia seguinte nunca será ouvida por aqueles já embriagados por um whiskey que parece de primeira.
Mas, se o juízo competente foi tido como inoportuno, onde estavam as instituições de regulação do sistema? Nos EUA, o que fez o Federal Reserve? Um gigantesco castelo de cartas, formado de todos os tipos de instrumentos financeiros exóticos, prosperou a sua revelia e nada foi feito. Um verdadeiro sistema bancário paralelo, "shadow banking" em inglês, absorvia trilhões de dólares, sem nenhuma supervisão e adoção do mínimo de regras de prudência bancária. Alavancaram uma catástrofe planetária.
Como é possível, em um complexo e bem informado sistema financeiro, golpes de estelionatários tão antigos quanto o aplicado pelo Sr. Madoff crescerem a ponto de tragarem US$ 50 bilhões? Não foi detectado por nenhuma instituição? O mercado foi acometido pela cegueira dos caçadores de tesouros? Os investidores não calcularam que era muita rentabilidade para pouco risco? Esse golpe é tão antigo e recorrente que só pode ser aplicado em ambientes tomados por um espírito de vale-tudo. Puni-lo com 150 anos de prisão soa como uma prestação de contas tardia e pouco convincente. Onde estavam as autoridades reguladoras?
Estavam desregulando o mercado financeiro americano. Vendendo ao planeta e, principalmente, aos emergentes as virtudes do mercado autorregulado. O capital livre de amarras levaria todos ao paraíso do crescimento e da prosperidade. Como não houve distribuição de renda relevante durante as últimas décadas nos países livres dos penduricalhos da regulação, alguns espertos chegaram ao paraíso dos bônus de final de ano e outros foram pegos no sobre-endividamento em cartões de crédito de várias bandeiras.
E o FMI, sempre zeloso de suas receitas de ajuste estrutural, como não alertou aos países membros que uma tempestade perfeita estava no horizonte? Como não percebeu que em um mundo com US$ 65 trilhões de PIB não se poderia valorizar US$ 650 trilhões em ativos financeiros indefinidamente?
Nesse momento, é óbvio que a autorregulação dos mercados é mais um mito requentado pela ideologia liberal, que não deu certo. A classificação de risco pelas agências privadas, tanto em relação à saúde das instituições, bancos de investimentos, seguradoras, fundos de hedge e bancos comerciais, como também dos produtos financeiros específicos, está com a credibilidade comprometida. Ativos tidos como de baixo risco tornaram-se tóxicos em poucos dias.
As empresas de auditoria, que passaram por maus momentos com a quebra da Nasdaq em 2001, voltaram a um silêncio sepulcral. Os conselhos de administração das grandes empresas revelaram-se pouco efetivos e até incidentes de pressão sobre conselheiros mais zelosos e, preocupados com os riscos das estratégias corporativas, vieram a público.
É evidente que o esforço para evitar um colapso sistêmico financeiro de proporções planetárias não envolve apenas a derrama de trilhões de dólares nos bancos e economias intoxicadas, mas também o resgate da confiança nas instituições de regulação públicas e privadas e a defesa de valores sociais empoeirados desde a avassaladora hegemonia dos aventureiros das finanças alavancadas. Trabalho, emprego, distribuição de renda, produção e solidariedade social.
A ideia de que todos estamos no mesmo barco é sedutora. No entanto, é justo que os contribuintes de última instância, os assalariados e pequenos produtores, se perguntem por que esse espírito surge apenas no momento de socializar os prejuízos. Por que até há pouco era coisa considerada antiga, resquício das dores do pós II Guerra, já de muito superadas? É justo e correto que reivindiquem contrapartidas sociais nesse soerguimento das economias.
É justo e necessário que os países emergentes, que fizeram imensos sacrifícios para organizar suas economias arruinadas pela estagnação prolongada, hiperinflações e crises políticas e sociais, queiram uma voz mais efetiva nas instituições multilaterais. É justo que não aceitem pagar pela aventura alheia e que queiram defender seu crescimento econômico, sua capacidade de geração de emprego e de inclusão social.
Se é verdade que os ricos estão perplexos com suas perdas, mais verdade é que os pobres pagam um preço que não se contabiliza em dinheiro, mas em perda de esperança.
Artigo de Antônio Prado, doutor em política econômica pelo IE-Unicamp, professor do Departamento de Economia da PUC-SP (licenciado). Atualmente é chefe do Departamento de Relações com o Governo na presidência do BNDES e docente no IRBr do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Fonte: Valor Econômico