O avanço das tendências recessivas juntou-se à provável eleição do socialista François Hollande para mudar os rumos do debate econômico na Europa. Nas edições de fim de semana, a imprensa do Velho Mundo divulgou que as autoridades da União Europeia estão dispostas a capitalizar o exaurido Banco Europeu de Desenvolvimento para aumentar sua capacidade de financiamento a projetos de infraestrutura.

Até agora empurradas goela abaixo dos vizinhos pelas tropas de ocupação do conservadorismo germânico, as políticas de austeridade estariam prestes a ceder lugar a um "pacto de crescimento". Na gramática do meu tempo, "estariam" é o condicional – hoje o empolado futuro do pretérito do verbo estar na terceira pessoa do plural. O modo condicional vai por conta das habituais tergiversações e declarações contraditórias das lideranças europeias. Clamam pelo pacto de crescimento, mas ainda fazem genuflexões contritas diante do altar em que se instalam as superstições da Teoria do Desemprego, do Juro Alto e da Moeda Única. (Juro alto é para os governos, baixo para os bancos financiados pelo BCE)

Os crentes pretendiam infundir confiança ao setor privado, tirar da letargia "os espíritos animais" dos empresários. Deprimidas diante dos sinais negativos emitidos pelo "estado calamitoso das finanças públicas", as expectativas de longo prazo seriam revigoradas pela frugalidade fiscal. Rezam os fiéis que apascentadas as antecipações pessimistas a respeito da evolução do déficit fiscal e do crescimento da dívida pública, as expectativas revigoradas das empresas e das famílias traria de volta o crescimento da produção e do emprego.

Trata-se da fé inabalável nos "efeitos dinamizadores da austeridade fiscal". Ela impõe o dogma da irrelevância dos multiplicadores de renda e emprego gerados pela elevação do gasto público em uma situação recessiva. Pois, os privados não se deixam tapear pelas manobras do governo: racionais e espertos antecipam um aumento de impostos no futuro e, virtuosos, poupam a grana desperdiçada pelos burocratas.

Os críticos mais otimistas das políticas de austeridade apostavam em taxas de crescimento medíocres para os próximos anos, acompanhadas de desemprego elevado. Já os realistas temiam o que realmente aconteceu: um duplo mergulho recessivo na Espanha do já desacreditado Rajoy e na Inglaterra do mauricinho Cameron com efeitos negativos sobre as demais economias da Eurolândia.

A procissão de padecimentos inclui a redução de salários, corte dos benefícios sociais, aumento de impostos, desemprego em alta. Desconfiam os ímpios que, aplicada no organismo de uma economia balbuciante, essa mezinha poderá deprimir ainda mais o consumo e o investimento privados, contrariando a "reversão de expectativas" almejada pelos que advogam os programas de austeridade fiscal generalizada. Numa situação de desemprego elevado e capacidade ociosa idem, essa turma não acredita nas relações virtuosas entre austeridade fiscal e "recuperação da confiança".

As políticas de redução do dispêndio e de aumento de impostos produziram, de fato, resultados contrários aos previstos pelos crentes da austeridade: ampliação dos déficits, desconfiança dos mercados, taxas de juros mais elevadas para rolagem dos papéis do governo e, consequentemente, mais desconfiança em relação à dita dinâmica da dívida.

Ainda recentemente o Banco Central Europeu criou uma linha de crédito de ?1 trilhão – prazo de três anos e juros de 1% – destinada a injetar liquidez nos combalidos bancos europeus e acalmar os mercados financeiros, induzindo a redução dos spreads pagos pelos governos mais fragilizados. Na última semana, as taxas de juros sobre os títulos espanhóis e italianos de 10 anos subiram outra vez, aproximando-se de 6% ao ano.

Os dados do último trimestre revelam que a injeção de liquidez promovida pelo Banco Central Europeu estimulou a fuga de capitais nas duas nações peninsulares. Na Ibéria e na Itália, os "capitais privados" deram no pé. Seus bancos tomaram a grana barata e abundante oferecida pela generosidade pública do senhor Mario Draghi e pagaram os bancos estrangeiros que, por sua vez, escaparam para paragens mais seguras, deixando os governos italiano e espanhol na mão.

O mundo se curva às façanhas e peripécias da razão cínica, aquela que organiza os postulados da ortodoxia financeira. O Banco Central Europeu, proibido de financiar os governos, está autorizado, numa conjuntura de desalavancagem e redução do gasto agregado, a facilitar a fuga de capitais, fomentar a preferência pela liquidez e estimular as manobras especulativas dos gestores da riqueza financeira.

Os bancos espanhóis, por exemplo, ainda carregados de dívida hipotecária privada – impagável em todos os sentidos da palavra – tomaram muita grana do BCE. Na esteira da desalavancagem, não emprestam para ninguém, agravando as tendências recessivas da economia. Rajoy ensaia a criação de um bad bank para abrigar a gororoba estragada e limpar as carteiras dos bancos dos ativos contaminados, mas diz que vai exigir provisões correspondentes para a dívida podre.

Diante de tais inconsistências, o insuspeito "Financial Time" pergunta se essas providências vão, de fato, liberar a oferta de crédito para estimular o gasto privado. Nas condições atuais, a pergunta deveria se estender à demanda de empréstimos. Na Espanha de hoje, as famílias endividadas e desempregadas não podem se endividar. Já as empresas não querem tomar empréstimos, desalentadas pelos resultados das políticas de austeridade. Enquanto isso, entre quatro espanhóis em idade de trabalhar, um está desempregado. Essa proporção é ainda maior na população jovem entre 16 e 25 anos: aí o desemprego atinge metade da turma.

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

Fonte: Valor Econômico

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