Em 1995, uma pesquisa realizada pelo Datafolha apontou que 89% de brasileiros aceitavam a existência do racismo no país. Somente 10% deles confessavam que já teriam discriminado negros.

Em 2001, quando a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), pioneiramente, criou cotas para negros no ensino superior, conforme pesquisa do Ipea, os universitários brasileiros eram 97% de brancos. Os professores, pesquisadores e cientistas negros somavam 1%. 

Os negros compunham 70% dos que viviam abaixo da linha da pobreza e 63% do quadro dos pobres. Em 2001, era quase impossível encontrar um general negro, um almirante negro, um embaixador negro, um executivo negro comandando qualquer grande empresa do país.

Como se vê e sempre se soube, as relações entre negros e brancos no Brasil se estruturaram sob uma visão de racismo sem racistas e em uma concepção ambígua e irracional de que racismo e discriminação racial não existem, por que a ciência decretou que raças não existem -se distorção houver, é a discriminação social que mantem negros e brancos separados e desiguais.

Na sociedade escravista, a ciência não impediu que os negros fossem escravizados. Na sociedade da razão e do mercado, não permitiu que pudessem usufruir o ideal republicano de iguais, tidos por ela como integrantes de raça inferior.

No plano político real, nossa mistura de raças e nossa identidade mestiça de brancos, negros e índios esteve longe de significar integração e participação em pé de igualdade.

Apesar de patrimônio coletivo, nossa identidade tripartida tem servido como ideologia articulada que, negando o racismo e diluindo o racial no social, mantém privilégios, oportunidades, vantagens e estética social exclusiva, da qual os negros não participam.

Uma república de poucos e uma democracia de desiguais que segrega e interdita os acessos aos 51% dos brasileiros autodeclarados negros.

Apesar dos pesares e a despeito dessas visões e crenças equivocadas ultrapassadas, nos últimos 15 anos a conscientização e o comprometimento de destacados setores da sociedade, do governo, do Congresso e da mídia nacional na defesa e valorização da diversidade e igualdade étnico-racial e no combate à discriminação contra os negros, contribuíram para algumas mudanças.

A criação das políticas afirmativas de cotas para negros nas universidades públicas e, nas universidades privadas, do ProUni e outras importantes realizações resultaram no aumento expressivo dos negros no mercado de trabalho, em postos de prestígio da alta administração e mesmo na comunicação e estética social.

Se não é tudo que podemos (e não é), essas pioneiras e limitadas realizações e seus incipientes resultados nos permitiram sair do lugar comum e agir criativamente pra construir consensos e mudanças para colocar o país como uma república moderna, acessível e disponível a todos.

Por isso, era preciso seguir adiante, era preciso ir além.

A corajosa decisão do Supremo Tribunal Federal, que aprovou a constitucionalidade de cotas para negros no ensino superior, nos libertou das amarras de um falso dilema e devolveu o país aos trilhos da racionalidade.

Não abandonou os negros e honrou todos os brasileiros. Fortaleceu a justiça e definiu os fundamentos que permitirão a celebração verdadeira da nossa identidade e diversidade racial. Impediu que nos tornássemos gigante de pés de barro.

Com os negros, o Brasil fica mais coeso, mais fortalecido, mais produtivo, mais criativo, mais competitivo, mais colorido e melhor. Com os negros, o Brasil poderá mais.

JOSÉ VICENTE, 52, advogado, é reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares

Fonte: Folha de S.Paulo