A conselheira da Caixa Econômica Federal explica as manobras do governo para entregar empresas públicas ao setor privado – “Muitas vezes a gente ouve o presidente da República falando ‘Não vou privatizar a Caixa, o Banco do Brasil, a Petrobrás’. Ele fala isso porque essas empresas têm grande apego popular. Mas elas estão sendo privatizadas. Como isso está acontecendo? Através da venda das suas subsidiárias”, alerta Rita Serrano, do Conselho de Administração da Caixa Econômica Federal.
Ela começou a trabalhar no banco em 1989, e foi presidenta do Sindicato dos Bancários do ABC entre 2006 e 2012. Desde 2017, é representante eleita dos funcionários no Conselho da Caixa, e está na linha de frente da luta pela defesa do patrimônio público.
Em 2020, a Caixa atendeu cerca de 120 milhões de brasileiros por meio do pagamento do auxílio emergencial, além de oferecer crédito habitacional e empréstimos para pequenas e médias empresas.
Mesmo assim, a visão dominante é de que os serviços públicos são de má qualidade. “Só que tem um problema: o que é público é para todos, está voltado aos interesses dos cidadãos e das cidadãs. O privado está voltado para os interesses do consumidor, daquele que pode pagar”, afirma Rita.
Em conversa ao BdF Entrevista, quadro que vai ao ar todas as sextas-feiras, às 20h, na Rede TVT, Rita Serrano elenca quais seriam os impactos da privatização dos bancos públicos para a população em geral, além de explicar o que está em jogo com o projeto de lei da autonomia do Banco Central, aprovado pela Câmara dos Deputados em 10 de fevereiro.
“Os EUA são considerados o país mais liberal do mundo. Lá não existe saúde pública, não tem banco público federal. E acontece que é o país com o maior número de mortes na pandemia. Então esse modelo liberal de um Estado que não tem estrutura pública de atendimento caiu por terra”, ressalta Serrano.
Confira como foi a conversa (para assistir, clique aqui):
Brasil de Fato: Queria começar falando sobre a Medida Provisória 995, que abria brecha para a privatização da Caixa e caducou em dezembro do ano passado. Explique um pouco do que se trata essa MP e se ainda há risco de a privatização acontecer.
Rita: Muitas vezes a gente ouve o presidente da República falando “Não vou privatizar a Caixa, o Banco do Brasil, a Petrobrás”. Ele fala isso porque essas empresas têm grande apego popular. Mas elas estão sendo privatizadas. Como isso está acontecendo? Através da venda das suas subsidiárias. A Petrobrás há pouco tempo vendeu mais uma refinaria com o preço abaixo do valor de mercado.
O Banco do Brasil privatizou a área de seguridade, fala em privatizar a área de cartões e de fundos de investimento. A Caixa é a mesma coisa. Foram criadas várias subsidiárias na área de seguros, de cartões, de loterias, de fundos de investimentos. E agora se fala em criar mais uma, um outro banco, uma outra instituição financeira que nasceria subsidiária da Caixa e, em seguida, a Caixa transferiria suas operações principais para essa subsidiária e privatizaria. Então, apesar da MP 995 ter caducado, o governo pode a qualquer momento emitir uma nova medida provisória para cumprir essa função.
Quais seriam os impactos de uma possível privatização da Caixa para a população em geral?
Penso que depois da pandemia ficou muito mais simples explicar para as pessoas as consequências de um processo de privatização. Vejamos: os EUA são considerados o país mais liberal do mundo. Lá não existe saúde pública, não tem banco público federal. E acontece que é o país com o maior número de mortes. Então esse modelo liberal de um Estado que não tem estrutura pública de atendimento caiu por terra, esse discurso de privatização caiu por terra.
Lá também tem um auxílio emergencial, que inclusive o novo presidente retomou. Esse auxílio nos EUA é pago em cheque. Imagine em pleno século XXI, no país mais avançado do mundo, para as pessoas terem acesso a auxílio emergencial, elas têm que receber um cheque em casa, porque não existe um banco com o porte, a expertise, a capilaridade da Caixa, um banco público que possa cumprir essa função. Tanto é que o número de fraudes lá é muito maior do que aqui.
A área que mais tem corrupção é o setor privado: sonegação fiscal das empresas, dinheiro enviado para fora do país
A Caixa atendeu, no ano passado, em torno de 120 milhões de brasileiros, praticamente metade da população. Houve filas no começo, foi extremamente tumultuado, mas mesmo com todas essas dificuldades, você tem uma estrutura que ainda é pública para atender a população.
Se você privatiza a Caixa, qual banco vai atender a população? Itaú, Bradesco, Santander? Eles poderiam ter feito, mas não fizeram porque a regra é o lucro imediato, e essas operações não têm o resultado financeiro que os bancos querem. Além disso, estamos com uma vacinação extremamente lenta, dependendo de outros países para ter imunizante. Se o governo não tivesse cortado bolsas de pesquisa, se tivesse investido mais nas universidades e nos laboratórios públicos, o Brasil tem, sim, cientistas para produzir a própria vacina.
Além do pagamento do auxílio emergencial, quais outros serviços a Caixa prestou e vem prestando na pandemia?
A Caixa também teve um aumento em crédito habitacional. A carteira da Caixa em crédito habitacional superou muito aquilo que tinha sido projetado pela direção no Conselho de Administração. E após muita pressão da sociedade, o governo veio com o PRONAMPE, que é um programa de apoio às pequenas e médias empresas para mitigar os efeitos econômicos da pandemia.
Então houve um financiamento, e não foi só a Caixa que atuou no PRONAMPE, os outros bancos também atuaram, mas a Caixa se destacou nesses empréstimos. Por isso eu tenho profunda convicção em defender que a Caixa se mantenha pública. Instituições como Caixa, Banco do Brasil, Petrobrás, Eletrobrás, têm que servir para melhorar a qualidade de vida da população. Seja levando luz para todos, como fez a Eletrobrás, seja regulando o preço do gás e da gasolina para não estarmos no caos de hoje.
E tem outra coisa… A maior acusação que se faz contra as empresas públicas, o único grande argumento quando se fala em privatizar, é que vai evitar a corrupção. É uma retórica absurda, parece que não existe corrupção no setor privado. Mentira. A área que mais tem corrupção é o setor privado: sonegação fiscal das empresas, dinheiro enviado para fora do país sem controle efetivo.
É do setor privado que sai o dinheiro para comprar os agentes públicos. Tem corrupção no setor público? Tem. Só que ele é mais fiscalizado. A Caixa presta conta para 18 órgãos diferentes. Presta conta para o Banco Central, o Tesouro, o Ministério da Economia, a CGU, o TCU, e o setor privado, não. Você evita a corrupção aumentando a fiscalização e ampliando a participação popular.
Outra instituição que está na mira da privatização é o Banco do Brasil. Já começaram um processo de fechar agências, lançaram um Programa de Demissão Voluntária para diminuir o número de funcionários. Em 10 de fevereiro, houve uma paralisação dos empregados para protestar contra essas medidas. Quais seriam as consequências da privatização do BB?
O Banco do Brasil tem 213 anos e se especializou em investimento no agronegócio: na pecuária, na agricultura, no pequeno e médio agricultor. Esse processo que estamos vendo nos últimos anos, de acabar com o Banco do Brasil, é para privatizá-lo de vez. O Banco do Brasil já é uma sociedade anônima, parte das suas ações está no mercado privado. O governo controla 50,5% das ações. Ele já privatizou a seguridade. O Banco do Brasil era o maior do país em número de ativos, mas perdeu esse posto para o Itaú. Vem perdendo mercado no crédito.
Isso é uma política premeditada de encolhimento do banco, para poder acabar com ele. Agora vem fechamento de agências. Em muitos municípios, a única instituição financeira que tem ou é Caixa ou Banco do Brasil. Então, em alguns locais a população vai ficar sem atendimento. O BB é estratégico, deveria ser estratégico para o Brasil justamente para usar sua expertise, sua capilaridade, sua robustez para investir na produção de alimentos, que é uma marca do Brasil nas exportações. Com isso você gera emprego, gera renda, consegue segurar a família no campo, porque não adianta vir todo mundo para a cidade, que não tem emprego.
Também no dia 10 de fevereiro, foi aprovada na Câmara a autonomia do Banco Central. Então, a instituição que decide as políticas monetárias do país vai ser autônoma em relação ao governo. O que está em jogo nisso?
Os novos presidentes da Câmara e do Senado tomam posse e a primeira pauta é a autonomia do Banco Central, que inclusive é uma pauta que está no Congresso há muitos anos e ninguém teve coragem de bancar porque é um tema polêmico e que deveria ser discutido com a sociedade. Para a população entender: você elege um governo – como foi eleito Bolsonaro, ou Lula, Dilma, FHC – com uma pauta. Só que aí, depois da eleição, o novo governo não tem liberdade para executar essa política porque não pode mudar o presidente do Banco Central. Então tem primeiro um problema de legitimidade: um cara é indicado pro BC sem passar por pleito, por avaliação, e ele ganha quatro anos de estabilidade no emprego.
E você pode ter um conflito entre a política de quem ganhou a eleição e a do presidente do BC. Além disso, na proposta que fizeram, a questão da atividade econômica e do pleno emprego são secundários. Até estão lá, mas não são prioridade. O objetivo principal no projeto de lei para o Banco Central ser autônomo é o controle da inflação e a estabilidade do sistema financeiro. Isso é absurdo.
Se fala muito em garantir um Banco Central autônomo em relação aos políticos, mas em relação ao mercado, vai ser autônomo também?
A outra questão para refletir é a seguinte: se fala muito em garantir um Banco Central autônomo em relação aos políticos, mas em relação ao mercado, vai ser autônomo também? Se é para discutir Banco Central autônomo, tem que ser também em relação aos interesses das grandes multinacionais, dos fundos de investimento, dos bancos privados. Porque esses interesses, na maioria das vezes, não são os mesmos interesses da população, que quer emprego, habitação, educação, vida digna.
Tanto as empresas públicas quanto o funcionalismo público são geralmente mal vistos pela população. Por que isso acontece?
Primeiro, tem uma questão de cunho ideológico, de que tudo o que é público é ruim. É o tempo todo: serviço público não presta, educação pública não presta, saúde pública não presta. E aí fica parecendo que tudo o que é privado é bom. Só que tem um problema: o que é público é para todos, está voltado aos interesses dos cidadãos e das cidadãs.
O privado está voltado para os interesses do consumidor, daquele que pode pagar. Aqui na rua onde eu moro, tem agências dos cinco maiores bancos. Tem vezes que a fila do Itaú está três vezes maior que a da Caixa, mas ninguém fala da fila do Itaú. Na pandemia, quem foi que se dispôs a atender a população?
Opinião: Nos 160 anos da Caixa, o futuro bate à porta
Os empregados da Caixa, mesmo com o risco de contágio, sob pressão do banco, dos clientes, da imprensa que questionou o tempo todo o atendimento, eles estavam lá atendendo. Com dificuldades que quem vai lá não entende, porque fica na fila, fica bravo, com razão. Então tem um estigma, um pré-conceito, de que funcionário público não trabalha, não faz nada.
A outra questão é: você tem que garantir um serviço público de qualidade, mas isso não tem necessariamente a ver com quem está ali na linha do atendimento, tem a ver com a visão de quem está no governo. O Banco do Brasil está perdendo 5 mil empregados, mas já perdeu uns 30 mil nos últimos anos. A Caixa perdeu 20 mil empregados de 2015 para cá. É bem óbvio: quando você diminui o número de trabalhadores, o serviço piora. Mas nós somos todos cidadãos e cidadãs, portanto, cabe à sociedade se organizar para exigir serviços de qualidade. A sociedade não pode ficar só esperando.
Edição: Rogério Jordão