A polarização em torno do debate sobre as mudanças sugeridas pelo governo para a Previdência tem deixado em segundo plano o que realmente importa. O sistema previdenciário deveria ser tratado como política de Estado e é necessário avaliar permanentemente o conjunto de benefícios, em lugar de eliminá-los, e sua forma de financiamento. O Estado poderia criar, por exemplo, um comitê com representantes de diversos segmentos da sociedade.
O que tem prejudicado o debate honesto é a caricatura que parte da mídia faz do tema. A tentativa de mostrar idosos bem-sucedidos no trabalho ou astros de rock com mais de 70 anos como “exemplos de produtividade na velhice” são ações de convencimento com argumentos covardes que não representam a realidade de um país com diferenças colossais, cuja maioria da população começa a trabalhar cedo, por vezes em condições subumanas.
Mesmo assim, a reforma encaminhada ao Congresso limita-se à idade mínima de 65 anos para a concessão de benefício, a homens e mulheres, beneficiário rural ou urbano, além do tempo de contribuição de ao menos 25 anos. É o fim da aposentadoria exclusivamente por tempo de contribuição. A nova norma criará condições para benefícios inferiores ao salário mínimo e impedirá viúvas e viúvos de acumularem benefício próprio e pensão.
O próprio presidente, que defende com unhas e dentes a proposta, é um exemplo de aposentadoria precoce e sustenta que mudanças se impõem em razão de um sistema deficitário que beneficia jovens aposentados. É uma meia-verdade. A Previdência é amparo social e, além do benefício, o debate não pode desprezar outros fatores. Cabe destacar ao menos quatro deles.
A necessidade de financiamento é o primeiro. A Constituição garante a concessão de benefícios de Previdência Social sob o patrocínio da sociedade. Portanto, por princípio, não há déficit, mas necessidade de financiamento. Por isso, são estabelecidas contribuições de empresas, trabalhadores, sobre o lucro líquido, recursos de loterias etc. Mesmo sob a ótica meramente contábil, o sistema não seria deficitário.
Em estudo, os professores João Sicsú, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Eduardo Fagnani, da Universidades de Campinas, afirmam que as iniciativas indispensáveis para resolver o “problema” são: cobrar devedores e eliminar isenções.
Depois, é preciso discutir a idade mínima de 65 anos. De acordo com o IBGE, a expectativa de vida ao nascer no Brasil, para homens e mulheres, é de 75,1 anos. No caso dos catarinenses, a média sobe, no entanto, para 78,4 anos, a maior do País. Ao se aposentar aos 65 anos, o cidadão de Santa Catarina receberá o benefício por pouco mais de 13 anos. Para o maranhense, a vida vai até os 70 anos, o que significa cinco anos de aposentadoria. Percebe-se ainda grande discrepância entre homens e mulheres. A expectativa de vida média de um homem do Nordeste é de 68,4 anos, enquanto a das nordestinas é de 76,7. Os homens dessa região receberão benefício por 3,4 anos após uma vida de trabalho, enquanto as suas conterrâneas tenderão a viver 11,7 anos como aposentadas.
O valor do benefício é outro fator no debate. Segundo o boletim Resultado do Regime Geral, publicado pelo INSS, o valor médio mensal pago pelo Instituto aos seus 33,6 milhões de beneficiários, de janeiro a novembro de 2016, foi de 1.293,43 reais, ou 1,47 salário mínimo. A garantia de que um benefício não será inferior ao salário mínimo pesa nessa modesta média. A reforma levará ao pagamento de pensões e benefícios de prestação continuada inferiores a esse mínimo. Um pensionista receberia 60% do valor do benefício do titular, ou 776 reais em valor de novembro de 2016, considerada a média. Eventualmente, mais 10% por dependente enquanto perdurar a condição de dependência. O cálculo do Benefício de Prestação Continuada será revisto.
Em janeiro de 2006, o salário mínimo valia 300 reais e, em janeiro deste ano, 937. Se um benefício do INSS de 300 reais em 2006 fosse corrigido apenas pelo INPC, desprezada a variação do mínimo, seu valor hoje seria de 573,54. Assim, o benefício equivalente a um salário mínimo seria reduzido a pouco mais de meio salário.
O último ponto é a distribuição de renda. Reduzir benefícios é prejudicar o efeito de transferência de renda representado pelo sistema. Considerada a arrecadação divulgada pelo INSS na contabilização do Regime Geral de Previdência em 2015, o estado de São Paulo arrecada para o INSS o equivalente a 7% de seu PIB. Somados, os benefícios pagos aos aposentados desse estado representam 6% do PIB. No Maranhão, a arrecadação ao sistema corresponde a 4% do PIB local e o pagamento a beneficiários, 11%. Portanto, estados mais ricos, com capacidade maior de arrecadação, transferem indiretamente parte desse recurso aos estados mais pobres, por meio das aposentadorias. Recebem mais do que arrecadam 19 dos 26 estados e o Distrito Federal. Dificultar ou reduzir o tempo de pagamento de aposentadorias exatamente nas regiões mais pobres também reduzirá a transferência hoje existente.
Ajuste no sistema de seguridade social não pode ser feito sob a ótica meramente contábil, de corte de despesa indesejável. Não se faz um ajuste por meio da destruição da Seguridade Social. Esse debate precisa ser feito com a sociedade. Definir os rumos da Previdência na marra, sem a devida discussão, vai gerar mais pobreza e, como sempre, atingir em cheio os mais pobres e necessitados.
*É presidente da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae)