Se você ainda tem alguma dúvida sobre os malefícios da reforma da Previdência e o que está por trás da proposta PEC 06/2019, leia o artigo a seguir do doutor em economia Eduardo Fagnani e professor do Instituto de Economia da Unicamp, publicado pela revista CartaCapital, nesta segunda-feira (25). Segundo o pesquisador, a tal da ‘nova aposentadoria’ defendida pelo governo neoliberal levará os brasileiros à miséria, uma vez que da economia estimada de 1 trilhão de reais, 75% virão da subtração de direitos dos pobres. E não do corte de privilégios das corporações.
Ainda segundo ele, embora não tenha os votos suficientes no Congresso – e embora as últimas disputas entre aliados dificultem a tramitação do projeto -, o governo Bolsonaro promete aprovar a reforma da Previdência no primeiro semestre. Entenda o que está em jogo:
A destruição do pacto de 1988
Ajustar periodicamente as regras da Previdência é necessário. Países desenvolvidos o fazem sem destruir a proteção social. Aqui nem sequer se trata de alguma ‘reforma’ para ajustar. Na ausência de diagnóstico e de debate, procura-se impor transformações estruturais cujo propósito – não manifestamente declarado – é sepultar o pacto social de 1988 e destruir a Seguridade Social, transitando-se para o Seguro Social e para o assistencialismo.
A verdadeira reforma de Bolsonaro ainda está por vir
A proposta é uma nova peça do projeto ultraliberal em implantação, cujo único objetivo é introduzir diretrizes transitórias até que a verdadeira reforma seja feita por meio de dezenas de leis complementares, mais fáceis de serem aprovadas no Congresso.
Enquanto uma Emenda Constitucional exige o apoio de 308 deputados e 49 senadores, em duas votações em cada Casa, uma legislação complementar demanda 257 votos de deputados, em duas votações, e 41 de senadores, em uma votação. Portanto, busca-se apenas “desconstitucionalizar” as regras atuais, o que deve ser rechaçado com contundência. Caso contrário, mudanças futuras poderão ser feitas por atos normativos do Executivo e por Medidas Provisórias.
A “reforma” é a ventania que antecede a tormenta. O que é ruim pode ficar muito pior.
Regras duras para um mercado de trabalho frágil e inseguro
A proposta fixa regras severas para o Regime Geral da Previdência Social e desconsidera a realidade do mercado de trabalho. A População em Idade Ativa é composta de 170 milhões de brasileiros. Desse total, cerca de 40 milhões são adultos e estão fora da força de trabalho.
A População Economicamente Ativa contempla 105 milhões de trabalhadores, estando mais de 12 milhões em situação de desemprego (aberto) e cerca de 35 milhões trabalham sem carteira ou têm vínculo precário. Portanto, aproximadamente 90 milhões de brasileiros que já não contribuem terão mais dificuldade para cumprir as novas regras previdenciárias e, provavelmente, ficarão sem qualquer proteção na velhice. Em 2017, quase a metade dos trabalhadores ocupados recebia, em média, 747 reais por mês, 19,5% abaixo do salário mínimo vigente. O rendimento médio real domiciliar per capita era de 1.242 reais
Da Seguridade para o Assistencialismo
A “reforma” fixa regras excludentes para o regime geral:
A aposentadoria integral será para uma minoria com capacidade de contribuir por 40 anos.
A aposentadoria parcial, com valor rebaixado (60% da média de todas as contribuições) será inacessível para mais de 35% dos brasileiros, que nem sequer conseguem comprovar 20 anos de contribuição.
O reajuste dos benefícios deixaria de ser corrigido pela inflação.
A idade mínima de 62/65 anos poderá ser de 64/67 em 2033, pois sempre que a expectativa de sobrevida aos 65 anos se elevar um ano, a idade mínima também subirá.
As regras de transição são curtas e severas: em 2028, os homens terão de acumular 105 pontos de idade e tempo de contribuição (acréscimo de 9 pontos em 10 anos), e as mulheres, em 2033, terão de somar 100 pontos (acréscimo de 14 pontos em 14 anos).
Na Previdência Rural, a idade mínima da mulher sobe de 55 para 60 anos e o tempo de comprovação da atividade rural é substituído por tempo de contribuição durante 20 anos;
Cria-se a aposentadoria por invalidez de primeira classe (acidente no trabalho) e de segunda classe (fora do trabalho), cujos valores de benefício são distintos (respectivamente, 100% e 60% da média de contribuições).
Igualmente, institui-se a pensão por morte de primeira e de segunda classe (que pode ser inferior ao salário mínimo).
A “reforma” restringe o acúmulo de mais de uma aposentadoria e pensão.
O conceito de “proteção à maternidade” é alterado para “salário-maternidade”, o que pode restringir direitos.
A “reforma” cria mais dificuldades para a aposentadoria de cidadãos com deficiência (a deficiência “leve” passa a exigir 35 anos de contribuição).
Restringe-se o critério para o Abono Salarial (de dois para um salário mínimo), afetando mais de 20 milhões de brasileiros.
A “segregação contábil” do Orçamento da Seguridade Social pode tornar constitucional uma “contabilidade criativa” praticada desde 1989 – considera-se que a Previdência é financiada apenas pelos empregados e empregadores.
Com isso, poucos conseguirão cumprir as novas regras e há o risco de uma corrida em massa para a proteção assistencial, que não exige contribuição. Como freio, a “reforma” ergue um muro de contenção fiscal, rebaixando o valor dos benefícios de prestação continuada para 400 reais.
A reforma aumenta a desigualdade
O governo estima uma economia de 1,165 trilhão de reais em uma década. Desse montante, 75,6% decorrem da subtração de direitos dos “privilegiados” do INSS (rural e urbano), do BPC e do Abono Salarial. Ou seja, dos mais pobres.
Qual a alternativa?
Além de crescimento econômico, é necessário buscar equidade na contribuição das classes, restringindo-se os privilégios concedidos ao poder econômico e às camadas de alta renda. É preciso que se desmonte, no Brasil, o maior programa mundial de transferência de renda dos pobres para os ricos.