Primeiro, ela proibiu os funcionários de sua delegacia de organizar festas de fim de ano com patrocínio de bancos. Na sequência, fixou em R$ 100 o valor máximo dos brindes que eles podem aceitar – conforme sugere, aliás, o código de ética do funcionalismo federal. Encontros a portas fechadas entre auditores fiscais e o pessoal de instituições financeiras continuaram permitidos, mas com a presença obrigatória de testemunhas.

Essas barreiras não existiam na Delegacia Especial de Instituições Financeiras (Deinf) da Receita Federal antes da posse de Clair Hickmann como chefe da unidade, no fim do ano passado. Instalada em São Paulo, a delegacia é responsável pela fiscalização de bancos, corretoras, seguradoras e demais agentes do sistema financeiro.

Por isso, dizem os colegas de Clair, era preciso limitar a troca de gentilezas entre alguns auditores e certos bancos que eles deveriam fiscalizar. A delegada, no entanto, prefere não comentar situações anteriores à sua chegada.

Gaúcha, 26 anos de Receita Federal, Clair faz parte do grupo que assumiu o comando do Fisco no ano passado, quando Lina Vieira assumiu a secretaria, no lugar de Jorge Rachid. Esse grupo já anunciou que, com eles, a prioridade é concentrar a fiscalização nas grandes empresas, deixando o contribuinte miúdo para os programas de computador.

Dentro dessa estratégia, o setor financeiro é um dos mais visados. No ano passado, ele pagou R$ 103 bilhões em impostos, o equivalente a 15,5% da receita tributária total da União. É o segundo maior contribuinte do País, atrás da indústria, que pagou R$ 130 bilhões em impostos em 2008. Por isso, o plano do comando da Receita é fazer marcação cerrada nos grandes grupos financeiros.

"Apesar do peso que tem, o setor financeiro estava a cargo de uma delegacia que não tinha gente nem foco. Agora, a Deinf vai fiscalizar de verdade", afirma o subsecretário de Fiscalização da Receita, Henrique Freitas. "Não é que vamos sair por aí autuando todo mundo. Queremos elevar a percepção de risco. O contribuinte vai pagar imposto em dia por medo de ser fiscalizado."

Para cumprir a tarefa de assustar os bancos, a Deinf está sendo revitalizada. Ela tem apenas 29 auditores para fiscalizar milhares de contribuintes. No mês que vem, chega o primeiro reforço: 35 auditores recrutados por meio de concurso interno. O objetivo é incorporar outros 35 ainda este ano.

De acordo com seus superiores, Clair foi escolhida para a tarefa por reunir conhecimento teórico e uma enorme experiência no campo da fiscalização. Ao longo da carreira, quase toda em Curitiba, ela fiscalizou políticos e grandes empresas.

Nos anos 90, Clair participou de duas operações de destaque nacional: fez parte da equipe que investigou o esquema de corrupção montado por Paulo César Farias, tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor de Mello; e também investigou empresas envolvidas no escândalo dos precatórios, operações irregulares com títulos públicos que teve a participação de bancos, corretoras, prefeituras e governos estaduais.

Formada em ciências contábeis e em Direito, com pós-graduação em administração tributária, Clair foi diretora de estudos econômicos da Unafisco, o sindicato dos auditores da Receita. Nessa fase, participava ativamente de debates, seminários e produzia artigos sobre o sistema tributário brasileiro.

Num deles, publicado poucos anos atrás, escreveu, em parceria com dois colegas, que o Brasil é "o paraíso dos bancos". O artigo dizia, basicamente, que no Brasil os bancos lucram muito e pagam pouco imposto.

"E pagam mesmo", diz Clair. "Mas não tenho nada contra os bancos. Eles têm bom nível, não são bandidos. São muito bem assessorados e assim podem fazer planejamento tributário (aproveitamento brechas e confusões da legislação tributária para pagar menos imposto). Nós temos o dever de fiscalizar para ver se eles não avançam o sinal". Procurada, a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) disse que não tinha nada a dizer sobre o assunto.

E o que a Receita espera com o patrulhamento ostensivo dos bancos? "Se a receita não aumentar, pelo menos tende a não cair demais", diz Marcelo Lettieri, coordenador geral de Estudos, Previsão e Análise da Receita. "Em tempos de crise, não perder receita vale muito."

A Deinf já acertou algumas diretrizes. Ficará de olho no planejamento tributário dos bancos, estratégias que produzem bolas divididas como o PIS e a Cofins sobre a intermediação financeira, que as instituições não recolhem com base em liminares da Justiça. Ou os créditos tributários que as instituições usam para descontar do imposto que têm a pagar.

Pelas regras atuais, válida para qualquer empresa, o contribuinte faz a compensação por conta própria e a Receita tem até cinco anos para checar se o tal crédito existe ou não. Depois desse prazo, o Fisco não pode fazer mais nada, mesmo descobrindo que a operação é fraudulenta.

Com vinte e poucos fiscais, a Deinf realmente não tinha como fazer uma checagem criteriosa. Se realmente conseguir o reforço de até 70 auditores, as chances aumentam.

Para dar uma ideia da pedreira que é fiscalizar instituições financeiras, abarrotadas de operações impenetráveis para o fiscal comum, Clair conta o que aconteceu dias atrás com um auditor que foi conferir o provisionamento para créditos duvidosos de um banco. "Eles entregaram 1,2 milhões de contratos. O fiscal trabalha por amostragem, mas tudo nos bancos é complicado."

Fonte: O Estado de São Paulo / David Friedlander