“O rio é um parente nosso, como um espírito que cuidava de nós, que nos abençoava. No tempo da ditadura, meu povo foi retirado da aldeia a força para que ali construíssem um forte. O rio se revoltou, destruiu o forte e meu povo retornou para a aldeia. Mas o rio foi morto. O povo está triste. Alguns anciões já morreram, outros, ainda vivos, não conseguem olhar o rio que foi morto. É difícil falar em reparação  para esse crime. Até agora ninguém foi preso, ninguém foi responsabilizado. Mas nós sabemos que a Vale é a culpada. A Vale virou as costas para nós, não quis receber o nosso documento escrito a mão. A Vale tem de assumir a responsabilidade. O Ministério Público tem sido atuante, é bom para nós. Mas tem de cobrar mais o Ibama. Mal passou o desastre e o Ibama liberou a Samarco para voltar a operar”.

A fala emocionada, que arrancou aplausos do auditório lotado, é de Daniel Krenak, que vive em Resplendor, Minas Gerais. Os índios krenak não têm mais as água do rio Doce para pescar, nadar, realizar rituais religiosos e ritos de passagem da adolescência para a idade adulta. Os hábitos alimentares, culturais e religiosos mudaram desde o rompimento da barragem da Samarco, em 5 de novembro de 2015, considerado o maior desastre ambiental do gênero no mundo. “E a gente, tudo fragilizado, tendo de resistir. E vamos resistir”, disse.

O relato da liderança indígena do sudeste de Minas Gerais traz muito da fala de Thiago Alves, militante do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB). “O crime da Samarco não acaba. Continua. Nenhum atingido recebeu casa até hoje. Sequer há prazo para início dessa compensação. Nosso direito à água, à moradia, foram violados. A Samarco não reconhece que a saúde da população do campo e da cidade está sendo afetada. Precisamos estar organizados para seguir lutando”.

E também da quilombola Sandra Georgete, de Barcarena, no Pará. “No dia 17 de fevereiro, a água da forte chuva espalhou os metais pesados da mineradora e passamos a viver essa situação. Mas não é a primeira vez que essas empresas prejudicam a nossa água. Há mais de 30 anos sofremos com problemas assim. Queremos o ressarcimento desse impacto todo. Queremos reparo. A prefeitura e o Ibama foram omissos”.

Da comunidade de São Miguel da Ilha Preta, em São Mateus (ES), a pescadora e marisqueira Sílvia Lafaiete Pires faz coro e diz que água, para beber e tomar banho – de canequinha –, só da chuva. “Não tenho dinheiro para comprar água mineral. Já vi muita gente morrer, há muitos casos de câncer. Essa água está matando a gente. Antes era água contaminada só pela Petrobras. Agora, tem ainda os rejeitos que vieram com a lama da Samarco. Vamos resistir”.

Direitos violados

Histórias de direitos violados pela ação irresponsável de empresas respaldadas pela corrupção complacente e a impunidade, e de pessoas que resistem com todas as forças e lutam por seus direitos, foram os destaques do primeiro dia do Fórum Alternativo Mundial da Água – FAMA 2018, aberto neste sábado (17), na Universidade de Brasília (UnB).

O evento, que vai até o próximo dia 22, é um contraponto ao 8º Fórum Mundial da Água, que começa oficialmente neste domingo (18) e termina no dia 23, também na capital federal. Neste período, representantes das defensorias públicas do Brasil e da Argentina, do Ministério Público Federal e estaduais, organizações não governamentais do Brasil, Argentina, Chile e Bolívia, sindicatos e especialistas em sustentabilidade  falarão sobre água na perspectiva de direito humano fundamental, com o objetivo de formular diretrizes e recomendações necessárias para a gestão eficiente e participativa da água como bem público.

Presente à abertura, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, destacou que “o nosso compromisso com a defesa dos direitos fundamentais é sério e o nosso compromisso com o direito humano à água é fundamental”. E afirmou que “o Ministério Público brasileiro acolhe a pretensão da sociedade civil, além de comungar com o mesmo raciocínio e visão, de que a água é direito humano fundamental”, disse.

Raquel falou também sobre aspectos jurídicos envolvendo Constituição e recursos hídricos. “Embora a Constituição Federal trate da água, toda a disciplina jurídica existente no Brasil tem abordado a água como um elemento do direito de propriedade, como um elemento do direito ao meio ambiente ou sob o aspecto do consumidor. A defesa que fazemos na minha gestão, contudo, é de que a água é um direito humano fundamental”.

Crime ambiental

Em mesa de debates promovida pelo Conselho Nacional do Ministério Público, procuradores, promotores de Justiça e lideranças comunitárias discutiram o crime ambiental praticado pela Samarco, a ilegalidade de acordos assinados entre a mineradora e o governo, que não foi homologado pela Justiça, e a criação de uma fundação (que recebeu o nome de Renova) para arcar com o ônus da reparação.

Com o caso mergulhado na lama da impunidade e caminhando para cair no esquecimento, o descaso de outra mineradora, a norueguesa Norsk Hydro, em Barcarena, no Pará, tem tudo para ter implicações de igual proporção. Até agora, o que se sabe com certeza é que a água vermelha que transbordou da barragem contém chumbo, sódio, nitrato e alumínio em níveis acima do permitido para a saúde humana. A população passou então a receber água, porém em quantidade insuficiente para todos. Em algumas ruas nem chega, segundo o Ministério Público do Pará (MP-PA).

“Ainda não se sabe se o que acontece em Barcarena é rompimento de barragem, mas o extravasamento. Pode ser que tenha havido sim uma ruptura, porque a barragem não está em funcionamento normal. Há ainda perícias a serem feitas e vamos tomar outras providências. O processo produtivo apresenta falhas, com extravasamentos ilegais”, disse a promotora Eliane Moreira, do MP-PA).

Segundo ela, as investigações do MP paraense apontaram para o conhecimento, por parte da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, da existência de um canal clandestino – e não de um tubo – para descarga de efluentes sem tratamento diretamente no rio Pará, conforme ela constatou em vistoria.

A empresa, segundo Eliane, argumenta que saí por ali apenas água de chuva. Uma análise do Instituto Evandro Chagas vai confirmar. Chamou ainda a atenção dela o licenciamento para funcionamento, de 1995, que não previa a ampliação. “É como se eu licenciasse para um coelho e depois quisesse por um elefante ali sem que ninguém percebesse. Um licenciamento que não se encontra na secretaria de Meio Ambiente, e já requisitamos mais de uma vez. Misteriosamente não era localizado, mas semana passada fomos informados de que partes dele haviam sido localizadas. O fato é que esse licenciamento original ainda não foi entregue ao Ministério Público”.

> Acompanhe a cobertura completa na página oficial do Fórum e no Facebook do FAMA.

Confira o vídeo produzido pelo FAMA com algumas imagens do primeiro dia do Fórum:

 

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