O debate foi aberto por Mário Theodoro, professor e doutor em Economia pela Universidade de Sorbonne, na França. Ele foi diretor da área internacional do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e é autor do livro A sociedade desigual. Theodoro ressaltou que, apesar de o Brasil estar entre as dez maiores economias do mundo, em função do grande crescimento entre as décadas de 1970 e 1980, esse crescimento foi acompanhado do aumento da pobreza e desigualdade social.
Mercado de trabalho
Para ele, o mercado de trabalho é um dos motores que reproduzem as desigualdades no país. Enquanto os jovens de classe média e alta – em sua maioria brancos – se dedicam aos estudos para só depois entrar já no mercado formal de trabalho, com garantia de direitos, os jovens pobres – em grande parte negros – começam a trabalhar mais cedo, de forma informal, e muitas vezes seguem na informalidade por tempo indeterminado.
Mario Theodoro no VII Fórum. Foto Eduardo Seidl/SindBancários
Conforme o doutor, o divisor histórico da desigualdade no mercado de trabalho foi a criação da Lei de Terras, em 1850, cuja distribuição fundiária foi feita exclusivamente para os nobres e não contemplou negros e indígenas.
“As terras eram entregues, segundo documentos da época, para pessoas que eles consideravam de boa estirpe, sempre brancos europeus. Aqueles negros escravos libertos pela escravidão ocuparam pedaços de terras totalmente inutilizadas no Brasil e, após produzirem e cuidarem das terras por anos, o governo brasileiro, ao ‘regularizar’ a propriedade determinou que aquelas terras não eram deles”, salientou.
Projeto de branqueamento
Theodoro contou que havia um pensamento de eugenia, hierarquia de raças, com difusão da ideia de que o Brasil, por ter maioria negra, não iria se desenvolver, e por isso precisava se branquear para progredir. Com isso, ocorreu a imigração europeia para “melhorar a qualidade da raça”. “Os trabalhadores brancos não vieram para somar, mas para ocupar o lugar dos negros. A intenção não era trazer gente mais qualificada, mas gente branca, para branquear o Brasil”, afirmou.
Como apresentou o economista, os negros foram perdendo espaço na agricultura e principalmente na indústria, fazendo com que os melhores empregos, nas áreas urbanas, fossem destinados aos brancos, levando os negros a se deslocar para as favelas e periferias, e exercer funções mais desvalorizadas, como o trabalho doméstico.
Nesse cenário, os imigrantes brancos conseguiram ascender socialmente, em especial a partir dos anos 1950, em função da facilidade de acesso à educação e ao mercado de trabalho, enquanto os negros permaneceram na pobreza. “A ascensão social foi criteriosa, discriminatória com a população negra. O mercado de trabalho nunca deu guarida para os negros”, destacou.
A exceção, segundo Theodoro, são aqueles que conseguiram empregos públicos entre as décadas de 1930 e 1950, como ferroviários e portuários, por exemplo, em empresas ligadas à exportação. “Esses empregos contribuíram para garantir uma estabilidade que outros negros não tiveram. Hoje as famílias negras de classe média se devem muito aos empregos públicos de décadas passadas”, afirmou.
Conforme o economista, a modernidade brasileira foi alcançada com grandes nichos de desigualdade. “A modernidade se junta à falta de condições mínimas de trabalho. Em uma sociedade extremamente desigual, a desigualdade não é só um modo de viver, mas a sociedade se vicia na desigualdade e só funciona a partir dela”, destacou.
Bancários
Assim como em outros ramos, no setor bancário há falta de oportunidades para pessoas negras. Ele explicou que há diferença entre discriminação e preconceito. “A discriminação tem cara, é ato de um sujeito, como no caso de xingamentos. Discriminação é caso de polícia. Já preconceito não tem sujeito, é quando o negro não é contemplado. Quantos generais, arcebispos, desembargadores, presidentes negros tivemos?”, questionou. Essa ausência em posições de poder vem do preconceito e é uma questão política, que se resolve com ações afirmativas.
Para ele, a lei das cotas ajudou a “quebrar um pouco o motor da desigualdade”, mas ainda há muita disparidade em vários setores. No meio bancário, Theodoro sugeriu que o movimento sindical cobre os bancos para adoção de ações afirmativas. Em sua opinião, para combater o racismo no setor é preciso garantir não só uma maior contratação de pessoas negras, mas também a possibilidade de progressão de carreira.
Violência sistemática
A segunda palestra da mesa foi de Tamires Sampaio, advogada, mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie e coordenadora do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Ela abriu sua participação afirmando que, para debater sobre relações de trabalho e raciais no Brasil, é preciso entender como a nossa sociedade foi construída.
Tamires Sampaio no VII Fórum. Foto: Eduardo Seidl/SindBancários
Capitalismo selvagem
No capitalismo, como destacou a palestrante, de uma maneira formal, legal, as pessoas precisam ser consideradas iguais, mas esse sistema também necessita da discriminação. “A forma como o capitalismo surgiu no Brasil teve como base fundamental a acumulação primitiva de capital, que aconteceu com base na exploração da população negra e no sistema escravocrata que existiu aqui. O racismo ditou a forma como o sistema econômico brasileiro surgiu e se organizou”, reforçou.
Mesmo o Brasil tendo mais de metade da população negra, sendo o país que mais recebeu pessoas escravizadas e com o maior número de negros fora da África, ainda há resquícios do processo escravocrata. “O capitalismo precisa da discriminação. Por isso, a objetificação e a animalização da população negra persistem”, defendeu.
A advogada comentou sobre como a história do povo negro é contada de forma deturpada, sem falar das riquezas do continente africano, da cultura, mas, pelo contrário, atribuindo aspectos negativos a essa população, como inferioridade intelectual e demonização das religiões de matriz africana.
“A gente aprende que esse lugar de inferioridade é o nosso lugar. A gente aprende que a nossa religião, ancestral, é uma religião ligada ao mal. A nossa cultura, o funk, o samba, o rap, a capoeira foram criminalizados historicamente no nosso país. Havia leis que criminalizavam o curandeirismo, a capoeira, o samba. Porque é fundamental que todos entendam que tudo que é produzido pelo nosso povo precisa ser de alguma forma escanteado, inferiorizado, para que a gente não se entenda enquanto pessoas, enquanto um grupo coletivo que tem história”, denunciou.
Abolição de fachada
Mesmo com a abolição da escravidão no fim dos anos 1880, a população negra seguiu sendo desumanizada, com o alto índice de encarceramento e a naturalização da morte dessas pessoas. “Houve uma mudança de dinâmica, antes era o navio negreiro e a senzala, hoje são as prisões”, afirmou Tamires, ao ressaltar que mais de 60% da população carcerária é negra e mais de 80% do número de assassinatos é cometido contra pessoas negras.
Ela comentou sobre a aprovação de leis, nos governos progressistas, que contribuíram para garantir mais direitos à população negra, mas que nem sempre são cumpridas, como no caso da PEC das domésticas, pois muitas ainda trabalham sem registro em carteira. “Leis são importantes, mas não adiantam se não há políticas públicas para cumpri-las, já que os operadores do Direito se beneficiam com as desigualdades”, ressaltou.
Fonte: SindBancários / Contraf – CUT