Controle de sistemas de busca, interação e armazenamento do mundo digital, por grandes corporações, concentradas em sua maioria nos Estados Unidos, geram um colonialismo digital
Se o Brasil já amarga o fato de ser um país de desenvolvimento industrial tardio, o cenário fica ainda pior quando analisamos a produção de tecnologias digitais com o selo 100% verde e amarelo, justamente em um setor central para a correlação de poder no mundo: Inteligência Artificial (IA). O alerta é do doutor em Ciências Políticas da Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Sérgio Amadeu, que palestrou na mesa “IA e seus impactos na vida, no emprego e na sociedade”, durante a 26ª Conferência Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro, na manhã deste sábado (8).
Apesar de ter um número expressivo de universidades e centros de pesquisa, estruturas públicas que geram grande quantidade de dados e inúmeras empresas de estatais de tecnologia da informação, o país não aparece entre os desenvolvedores de modelos significativos de IA.
“A maioria ou quase a totalidade dos países está destinada a ter papel secundário ou irrelevante no ecossistema de desenvolvimento das tecnologias chamadas de inteligentes. E as barreiras para a entrada no setor estão se elevando em níveis superiores aos do mundo industrial”, destacou Amadeu, que também é militantes na batalha pelo software livre.
Dados de 2022, apresentados por ele no evento, mostram que os Estados Unidos possuíam, naquele ano, 16 sistemas significativos de aprendizado de máquinas, o Reino Unido oito e a China três. Canadá e Alemanha possuíam dois sistemas, cada um, e França, Índia, Israel, Rússia e Singapura um sistema por país.
“Há também uma concentração significativa no mercado de armazenamento de dados e dos chamados serviços de nuvem”, continuou o ativista digital. “Em 2021, apenas cinco empresas detinham 81,2% desse mercado mundial de infraestrutura de serviços”, completou. Essas cinco grandes empresas da tecnologia (big techs) são Amazon (com 38,9% do mercado); Microsoft (21,1%); Alibaba (9,5%); Google (7,1%); e Huawei (4,6%). Sendo que, no ano seguinte, em 2022, a Amazon e Microsoft ampliaram ainda mais a participação neste mercado para 40% e 21,5%, respectivamente.
Dependência
Amadeu ressaltou que essa divisão internacional não pode ser avaliada apenas do ponto de vista competitivo e comercial, de empresas e países que concentram a oferta de IA, mas do controle de informações decisivas para a segurança e dependência nacional.
“Em seu livro Colonialismo digital: o império dos EUA e o novo imperialismo no Sul Global, Michel Kwet afirmou que o colonialismo digital, exercido principalmente pelos Estados Unidos, se baseia no controle do hardware, software e conectividade. No texto, ele escreve que ao controlar o ecossistema digital, as grandes corporações controlam também experiências mediadas pelos computadores e isso lhes dá direito sobre questões políticas, econômicas e culturais, portanto sobre o domínio de vidas. Esse é um novo controle imperial”, completou o cientista político.
Pesquisa realizada pela Educação Vigiada, também utilizada na palestra por Sérgio Amadeu, revela que 71,53% das universidades brasileiras utilizam os e-mails do Google e outras 7,64% e-mails da Microsoft.
Amadeu destacou ainda que, durante o mandato de Bolsonaro, em 2020, o governo brasileiro, por meio do Ministério da Educação, contratou a Microsoft, que passou a hospedar em sua nuvem o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) que, atualmente, tem a inscrição de mais de 1,5 milhão de estudantes.
Outro caso que chama ainda mais a atenção é do SouGov.br, que precisa ser utilizado pelos servidores do poder público federal, lançado também durante a gestão Bolsonaro, em 2021. Ao aceitar os termos de uso e política de privacidade do aplicativo, o usuário é chamado a consentir com a transferência internacional de suas informações à Microsoft, responsável pelo sistema.
Cada vez mais caro e complexo
Um ponto crítico dessa escalada de produção de IA é que, por ter a produção altamente concentrada, sua atualização está cada vez mais complexa e cara, tornando difícil a quebra de oligopólios no setor.
Sérgio Amadeu mostrou que, em 2022, a indústria era responsável por 32 dos sistemas significativos de aprendizado de máquinas, enquanto que, parcerias entre indústria e academia responsáveis por um sistema, organizações colaborativas e coletivos de pesquisa por dois sistemas cada um, a academia por um sistema e setores sem fins lucrativos (que em anos anteriores chegaram a se desenvolver na área) já não tinham nenhum sistema em andamento.
O cientista político também citou uma matéria publicada na MIT Technology Review, sobre a privatização da IA que revelou que, atualmente, para competir no setor é necessária uma “enorme intensidade de recursos para produzir resultados dignos”, poder que somente as grandes empresas detém, tornando cada vez mais difícil a geração no meio acadêmico.
A título de exemplo, o chat GPT-2, lançado pela Microsoft no final de 2019, foi treinado com 1,5 bilhão de parâmetros. O sistema mais atualizado, chat GPT-3, foi treinado com 175 bilhões de parâmetros e a previsão é que o GPT-4 leve essa escala aos trilhões.
O PaLM, concorrente do GPT, desenvolvido pela Google e lançado em 2022, foi treinado com 540 bilhões de parâmetros e custou cerca de US$ 8 bilhões (valor 160 vezes maior do que custou o GPT-2).
Desafios do Brasil para enfrentar o cenário
“O pesquisador de desenvolvimento científico, Nathan Rosenberg, evidenciou que um país pode ser usuário, copiador ou desenvolvedor de tecnologias digitais e o Brasil é usuário”, destacou Sérgio Amadeu, completando que, atualmente, “os elementos essenciais que sustentam a revolução tecnológica são os semicondutores, as infraestruturas de armazenamento e de processamento”.
Amadeu observou que o Brasil é um país fornecedor de dados para big techs, com usuários de serviços e produtos desenvolvidos e treinados com dados da população que tem desenvolvedores de aplicativos. No entanto, estes utilizam grandes modelos que rodam nas estruturas das gigantes da tecnologia. Mas, para o cientista político, há caminhos estratégicos para o Brasil superar este cenário.
“As nossas condições reais estão no número expressivo de universidades, centros de pesquisa, de estruturas públicas que geram grande qualidade de dados, além da diversidade cultural”, pontuou. “Também temos inúmeras empresas estatais de tecnologia da informação, uma economia diversificada e usuária intensa de tecnologias informacionais e grande autonomia na gestão da internet do país”, completou.
Entretanto, para aproveitar essas condições, os empecilhos que o país precisa superar não são fáceis e incluem a cultura do menor esforço das elites nacionais e que detém recursos que poderiam ser investidos no setor. “Soma-se a isso a consolidação da doutrina neoliberal no país, que bloqueia investimentos expressivos em áreas públicas para tecnologia da informação”, frisou o ativista digital. “E, além da dependência forte de softwares e hardwares fundamentais, temos grandes dificuldades na formação de técnicos, engenheiros e matemáticos”, concluiu.
Fonte: Contraf-CUT