São Paulo – Identificar uma ossada e devolvê-la para a família já é um ato importante, mas politicamente também significa o caminho oposto ao atualmente vivido para o Brasil, avalia o ex-secretário nacional e municipal (em São Paulo) de Direitos Humanos Rogério Sottili. Emocionado com a confirmação do nome de Dimas Antônio Casemiro entre os desaparecidos da vala clandestina de Perus, ele ressaltou a participação de várias pessoas no complicado processo de construção do Grupo de Trabalho Perus (GTP), com destaque para os familiares, e destacou a importância da descoberta para a memória do país. A reportagem é da Rede Brasil Atual.
“Eu sei o que significa para o Fabiano (filho de Dimas) ou para os irmãos dele (Dimas) encontrar as ossadas, fazer o enterro, fazer a reparação”, diz Sottili. “Mas eu sei da importância que isso tem para o futuro do Brasil”, acrescenta. Para ele, o momento do país é resultado de “um processo não bem elaborado” em termos de busca da verdade durante o período da ditadura, diferente do que aconteceu em países vizinhos que também viveram regimes autoritários.
“O que está acontecendo no Brasil jamais acontecerá na Argentina, jamais acontecerá no Chile. Eles elaboraram o seu processo de memória e justiça”, afirma o ex-secretário, apontando a cultura do “deixar pra lá” vigente por aqui. “Quando a gente identifica o Dimas e devolve para a família, é para que se destrave esse processo, se retome a discussão da Lei de Anistia, se responsabilize quem cometeu crimes que são imprescritíveis.”
Ele também fez referência à intervenção “com sinais de ditadura” no Rio de Janeiro. “Estamos vivendo uma situação em que a gente não sabe se a Rede Brasil Atual vai estar aberta amanhã, se a Rádio Brasil Atual vai estar no ar, o Instituto Vladimir Herzog…”, afirma Sottili, que atualmente trabalha na instituição. O ex-secretário cita declarações do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, favorável a outras intervenções, e lamenta o processo iniciado com a deposição de Dilma Rousseff em 2016, em uma série de medidas “com total desrespeito à Constituição”.
Familiares das vítimas – Sobre a primeira confirmação de um nome entre as ossadas de Perus, ele lembra das primeiras tentativas nesse campo, ainda trabalhando com Paulo Vannuchi na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. “Era uma questão muito central pra ele. Foram várias experiências, várias tentativas. E conseguimos alguns avanços importantes naquela época. Aquela experiência foi extraordinariamente importante para a minha vida. E um pouco frustrante, porque a gente sabia que tinha que avançar mais nesse tema.”
Ao assumir a Secretaria de Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo, convidado por Fernando Haddad, o primeiro desafio em relação a Perus foi conversar com os familiares dos desaparecidos, descrentes da ação do poder público. Mesmo na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), havia certa resistência, basicamente por falta de recursos e de equipamentos. Começariam ali as gestões que culminaram na criação do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf).
“A gente sabia que se não houvesse um centro técnico teríamos muitas dificuldades”, lembra Sottili. Ele destaca a participação de várias pessoas nesse processo, como as ex-ministras Maria do Rosário e Eleonora Menicucci. Era preciso concretizar esse centro, porque os familiares não aceitavam as alternativas: o Instituto Médico Legal ou a Polícia Federal, vistas como “parte do processo de desaparecimento” de militantes durante a ditadura. Isso só podia acontecer se o caso Perus fosse visto como prioridade.
“A Ideli (Salvatti) foi chave, crucial nesse processo. O Haddad também teve determinação”, afirma Sottili. Ele cita ainda a ativista Suzana Lisboa (“Foi uma guerreira”), a ex-prefeita Luiza Erundina, sob cuja gestão se deu a descoberta da vala clandestina, em 1990, e Carla Borges, ex-coordenadora de Direito à Memória e à Verdade da prefeitura. “A equipe técnica do Caaf são outros heróis”, acrescenta. À lista somam-se ainda a procuradora da República Eugênia Gonzaga, o ativista Ivan Seixas e o perito Samuel Ferreira.
A busca de recursos foi um desafio permanente para a manutenção das atividades, a partir da formação do GTP, em 2014, a partir da parceria entre as secretarias nacional e municipal de Direitos Humanos, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Unifesp. Isso permitiu superar dificuldades como o rompimento com os peritos argentinos, que faziam parte da equipe, juntamente com técnicos peruanos e brasileiros. “É o resultado de um trabalho que vem desde a descoberta da vala.”
Das caixas com mais de mil ossadas, 750 já foram analisadas. E 100 ossadas “com maior probabilidade de compatibilidade” foram enviadas para o laboratório europeu. Por isso, Sottili avalia que novas descobertas ainda podem acontecer. “Acreditamos que podemos encontrar outras pessoas.”