A superação da crise atual, sistêmica e estrutural, exige a construção de uma nova agenda civilizatória. Para isso, é preciso formar uma maioria política que alie capital produtivo e estratos sociais organizados, como trabalhadores e seus sindicatos, associações de bairros e entidades de classe média.

Uma das principais tarefas é a defesa da sustentação das atividades produtivas com redistribuição da renda e riqueza acompanhada da democratização das estruturas de poder, produção e consumo. A análise é de Márcio Pochmann*, presidente do IPEA.

O agravamento da crise do capital globalizado neste início do século 21 torna mais claro o anacronismo das idéias-forças atualmente existentes para a implantação de um novo projeto de sociedade. Poucas vezes antes as elites mundiais persistiram prisioneiras de pressupostos constituídos por quem já não vive mais, desconhecendo, portanto, as oportunidades que o novo permite concretizar.

De um lado, porque a trajetória do desenvolvimento econômico e social percorrida desde antes do segundo pós-guerra se mostrou incapaz de incluir a todos, uma vez que não mais de 1/3 de toda a população mundial teve alguma forma de acesso ao padrão civilizatório produzido pela chamada sociedade industrial do século 20. De outro, devido à insustentabilidade ambiental que marca profundamente a perspectiva de reprodução continuada do atual padrão de produção e consumo em larga escala, fortemente destrutivo, especialmente pela elevação da temperatura e demais transtornos crescentemente ocasionados pelas mudanças climáticos globais. Ou seja, o projeto de sociedade existente não pode ser universalizado, salvo na forma do subdesenvolvimento que gera o mito de permitir a absorção de alguns simultaneamente à exclusão da maioria.

A crise atual é sistêmica e estrutural. Começou pelo coração do capitalismo central, que define o sistema monetário-creditício, e passou a contaminar pelo mundo o tecido produtivo generalizadamente, com efeitos sociais e políticos sem paralelo nas últimas sete décadas e ainda não plenamente conhecidos. Por atingir a estrutura básica do edifício sobre a qual se encontra erigido o edifício da sociedade capitalista, percebe-se logo que o conjunto ofertado de medidas até agora pelo keynesianismo bastardo, embora urgente e necessário para atenuar emergencialmente a sangria desatada que o retrocesso neoliberal de anos anteriores provocou, serve tão somente de remendo, meia sola, como diria um bom sapateiro.

Não se trata, portanto, de uma alternativa concreta e efetiva como fora durante a Depressão de 1929, que somente se efetivou com a experiência da Segunda Guerra Mundial, capaz de fazer com que ricos e poderosos aceitassem as reformas civilizatórias potencializadoras de um dos mais formidáveis ciclos de expansão socioeconômica que durou quase três décadas. Em síntese, observa-se que dificilmente a reprodução de medidas idênticas às adotadas para debelar crises ou depressões passadas terá sucesso pleno tal a gravidade e profundidade da crise do capital globalizado.

Resistências à mudança

A trajetória consagrada pelos programas neoliberais de ajustes estruturais implementados desde o final da década de 1970 – inicialmente nos países do centro do capitalismo mundial e, em seguida, condensados pelo Consenso de Washington para as nações periféricas a partir da segunda metade dos anos 1980 – fracassou rotundamente. Por conta disso, o projeto de sociedade de ricos e poderosos convergente com o processo de globalização financeira mundial ruiu, deixando viúvas à caça de novos parceiros interessados em reavivar o defunto.

Até então, os protagonistas da agenda global neoliberal vinham sendo algumas das principais agências multilaterais que possuíam, invariavelmente, suas respectivas ramificações no interior de cada um dos espaços nacionais. Para isso, elas buscavam promover tanto a regulação competitiva na repartição da renda e riqueza por parte das corporações transnacionais (responsabilidade empresarial) como por meio do enxugamento do papel do Estado, que se transformou cada vez mais no mero reprodutor das ações internas voltadas à regulação competitiva dos capitais e às políticas sociais cada vez mais distantes do caráter seu universal, com ações marcadamente assistenciais e focalizadas para o restrito grupo social extremamente pobre.

Alem disso, o avanço tecnológico combinado à difusão de múltiplas cadeias de produção em rede planetária possibilitou a distinção entre o trabalho de concepção e o trabalho de execução num cenário de desgovernança global. Geograficamente, então, assistiu-se à conformação de uma nova Divisão Internacional do Trabalho que concentrou, sobretudo nos países ricos, o trabalho de concepção, exigente de educação continuada e de qualidade compatível com remuneração e condições de trabalho menos incivilizadas.

Nos países periféricos, com as reformas neoliberais em maior escala, avançou o curso da especializando econômica dependente do trabalho de execução, geralmente pouco qualificado, sub-remunerado e com condições de exploração comparáveis – muitas vezes – às da flexibilidade laboral do século 19. Nesses termos, diversos organismos governamentais e instituições não governamentais vinculados aos grandes grupos econômicos transnacionais voltaram-se à defesa de ações estatais pontuais e focalizadas na regulação social competitiva. Em resumo, tratou-se da disseminação do que se assemelharia ao neodarwinismo social voltado à emulação do individualismo competitivo. Tudo isso, é claro, à margem da regulação pública ou estatal, porém compatível com campanhas supranacionais de caráter assistencial e mercadológico envoltas com a lógica da responsabilidade social e de estímulo voluntário e assistencial isolacionista.

Com espraiamento hegemônico do capital globalizado fundamentou-se uma nova casta política e econômica mundialmente privilegiada, que se beneficiou dos ganhos da financerização da riqueza em escala planetária. Para isso, o fundo público tornou-se a chave, mais uma vez, para a repartição de renda entre os detentores dos direitos da riqueza financeirizada e os dependentes das políticas sociais nacionais despossuídas de seu caráter universal para focalização assistencial. Essa era a visão dos ricos e poderosos a manipular agências multilaterais e ramificações internalizadas no plano nacional engajadas no projeto de sociedade para poucos, enquanto a maioria era levada a conviver na luz da falsa disjuntiva entre o desemprego aberto ou emprego precário (trabalho de execução).

Em vista disso, constata-se como o tempo de predomínio do neoliberalismo representou um inegável esforço pela busca da acomodação política em contextos nacionais crescentemente marcados por maior polarização e exclusão social. Esse contexto terminou sendo responsável por sinais de regressão nas estruturas sociais que anteriormente fundamentavam as lutas sociais durante o ciclo do desenvolvimento fordista a partir do século 20, como no caso dos sinais recentes do desaburguesamento das classes médias assalariadas e da desproletarização da classe operária. Assim, ao invés das oportunidades do novo, as resistências neoliberais impuseram, inclusive, o retrocesso à velha agenda civilizatória que fora construída por significativas lutas sociais a partir do final do século 19 (tempo de estudo para a faixa etária 7 a 14 anos, início no trabalho regulado a partir dos 15 anos de idade, jornada de 48 horas semanais e aposentadoria para o fim da vida, acompanhada da segurança social contra os riscos do trabalho).

Somente o ilusionismo neoliberal pode justificar que o menos significaria mais para todos.

Maioria política para uma nova agenda civilizatória

Nos dias de hoje uma nova agenda civilizatória permite ser defendida a partir da construção de uma maioria política travestida pela coalizão interclasses sociais, capaz de compreender – no plano nacional – a reunião desde as famílias de maior renda plenamente incluídas no atual padrão de produção e consumo até os segmentos extremamente miseráveis da população, geralmente pouco incluídos pelas políticas sociais tradicionais. A emergência desse novo tipo de aliança política poderia fortalecer o conjunto dos estratos sociais de baixa renda e de nível médio organização, geralmente, integrados por alguma forma de organização e que expressem resistências à condução neoliberal do projeto de sociedade dos ricos e poderosos.

De certa forma, isso refletiria maior ênfase na disputa em torno da reorientação do fundo público comprometido com a improdutividade do circuito da financeirização da riqueza para a conformação de uma nova agenda civilizatória consonante com as exigências da sociedade pós-industrial. Sem resolver o problema da desigualdade crescente da renda e riqueza, a nova polarização entre ricos e pobres tende a ser acomodada por medidas funcionais simultaneamente à pobreza e à riqueza. Mas isso, contudo, está obstaculizado pelo aprofundamento da crise do capital globalizado.

Por isso, no entanto, que o fundo público originado pela luta política dos segmentos sociais mais organizados deve ser reformulado e novamente vinculado às receitas originárias, permitindo favorecer tanto a progressividade na tributação sobre a renda dos ricos como a universalidade da proteção social (gasto com saúde, educação, pleno emprego e assistência social).

Nessa direção em que se condena o atual processo de financeirização da riqueza – resultado da implementação dos programas de ajuste estrutural e da condução de políticas econômicas e sociais neoliberais -, apresentando-se a construção de maioria política que alie atores pouco privilegiados ou derrotados (capital produtivo e estratos sociais organizados, como trabalhadores e seus sindicatos, associações de bairros e entidades típicas de classe média) e aponte a defesa da sustentação das atividades produtivas com redistribuição da renda e riqueza acompanhada da democratização das estruturas de poder, produção e consumo.

Mesmo que a convergência entre segmentos tão heterogêneos seja de difícil viabilidade política, isso não significa, necessariamente, sua impossibilidade prática num ambiente tão hostil à organização regulada do capital produtivo e à estruturação de políticas universais de proteção social. Uma nova maioria política com esses propósitos parece estar em construção, já presente em algumas escalas localizadas, especialmente quando se trata de observar evidências factíveis e viáveis de políticas públicas compromissadas com a emancipação social, política e econômica. A ênfase na construção de uma nova agenda civilizatória deve ser perseguida, pois é ela que pode permitir a reconstrução da sociabilidade perdida, bem como liberar o homem do trabalho heterônomo no contexto das exigências da sociedade pós-industrial. Ou seja, o ingresso no mercado de trabalho aos 25 anos, a educação para o longo da vida, as 12 horas semanais no local de trabalho e a expansão de atividades ocupacionais socialmente úteis à sociabilidade, como cuidadores sociais, entretenimento e outras.

A base material necessária à sustentação desse novo patamar civilizatório global já existe, tendo em vista o crescente ganho de produtividade (física e imaterial) oriundo do capitalismo pós-industrial deste começo do século 21. Lembra-se que para cada dólar derivado da produção material há, simultaneamente, outros 10 oriundos do conjunto das atividades imateriais (não produtoras de bens, mas de mercadorias intangíveis). A captura dessa parcela do excedente econômico reafirma o projeto de sociedade protagonizado pela progressividade tributária e pela amplificação do gasto social capaz de gerar autonomização e empoderamento no conjunto dos povos no mundo. O choque redistributivo e o apoio ao desenvolvimento socioeconômico sustentável encontram oposição direta na agenda social do neodarwinismo, apontando, cada vez mais, para o novo sentido das disputas entre progressistas e conservadores.

Tarefa para um novo tipo do Estado

A ação pública precisa ser revigorada, sendo necessário o restabelecimento do Estado em novas bases. Não cabe mais a reprodução do velho Estado do século 20, adequadamente coetâneo com a problemática socioeconômica pertencente à sociedade industrial. A concepção do Estado funcional em "caixinhas" que respondem à setorialização das ações públicas, geralmente desarticuladas, quando não competitivas entre si, encontra-se ultrapassada. Os enormes desafios de sociabilidade e de gestão econômica da sociedade pós-industrial pressupõem a construção de um Estado matricial, trans e intersetorial, capaz de fazer confluir o conjunto de especializações em ações totalizantes.

No Estado do século 20, a soma das ações em partes oferecia um todo superior. Para atuar sobre os problemas gigantes da sociedade, o plano Beveridge que padronizou o Estado de bem estar social do segundo pós-guerra recomendou ações setorializadas, como na ignorância, o sistema público de educação; na doença, o sistema público de saúde; no desemprego, o sistema público de emprego e assim por diante.

Noutros termos a seguridade social que resultou da sociedade salarial generalizada pela industrialização estabeleceu outro patamar para a oposição entre proprietários e não proprietários. Com a propriedade social oriunda do trabalho assalariado houve a possibilidade da apropriação dos ganhos de produtividade material gerados pelo avanço da sociedade industrial.

Em virtude disso, as garantias de bem estar (educação, saúde, aposentadoria, assistenciais, entre outras) deixaram de dizer respeito quase que exclusivamente aos proprietários privados portadores de condições próprias de financiamento. A transformação de Estado liberal que até o início do século 20 se fundamentava em três funções básicas (monopólio da tributação, moeda e forças armadas), passou pela ampliação do fundo público que somente equivalia a menos de 10% do total do excedente econômico.

A substituição do Estado Liberal pelo Estado de Bem Estar Social na saída da Depressão de 1929 implicou a conformação de fundo público representando cerca de 30 a 45% do excedente econômico para sustentar a agenda civilizatória da sociedade industrial. Ou seja, a garantia do estudo público a todos, especialmente aos filhos de famílias se condições privadas de prover na faixa de 7 a 15 anos de idade, ingresso no mercado de trabalho após 15 anos, aposentadoria após três décadas de trabalho, jornada de trabalho de oito horas diárias e acesso à proteção social aos demais riscos do trabalho.

Naquela oportunidade, sem a realização da reforma tributária progressiva sobre os ricos, especialmente nos ganhos derivados da nova riqueza material representada pelo crescimento fantástico da produtividade, pouco da agenda civilizatória do século 20 haveria de ser implementada. A transformação do Estado Liberal dependeu da democratização política das estruturas de poder, produção e consumo, levadas avante por intensas lutas sociais. Do contrário, o regime de vida e trabalho do século 19 ainda se faria presente, descolado da riqueza gerada pela metamorfose da sociedade agrária para industrial e urbana, como o trabalho a partir de cinco anos de idade, jornadas de trabalho de 16 horas por dia, trabalho até morrer, analfabetismo generalizado.

Neste começo do século 21, quando se conforma a sociedade pós-industrial que têm mais 70% das ocupações envolvidas com atividades intangíveis, a produtividade que mais cresce é aquela que decorre do trabalho imaterial. A concentração dessa nova e imensa riqueza em poucas mãos é que potencializa a grave crise do capital globalizado. O enfrentamento dessa crise requer receitas novas, contemporâneas com as oportunidades atualmente em curso. A transformação da propriedade em favor de todos, especialmente as decorrentes das propriedades financeira e intelectual, impõe exigências como educação para a vida toda, não mais para as faixas precoces da vida (crianças, adolescente e jovem).

Adultos e velhos necessitam continuar estudando ao longo da vida, especialmente numa sociedade cuja expectativa média de vida deve superar os 100 anos de idade. Para educação de vida toda, em que o exercício do trabalho pode ser realizado em qualquer lugar (casa, praça, aeroporto, rodoviária, entre outros), deixa de ser funcional a velha e rígida divisão fordista da atividade (trabalho) com inatividade (estudo), pois o trabalho material é realizado fundamentalmente no local próprio de trabalho (fábrica, escritório, fazenda, laboratório, etc.).

Com o trabalho imaterial sendo efetuado cada vez mais fora do seu local tradicional, não há razão técnica que justifique as longas jornadas oficiais de trabalho do século 20, pois do contrário o cidadão permanece plugado no trabalho heterônomo quase 24 horas por dia. Aumentar o tempo livre requer financiamento público, como para as ações que envolvam descontaminar o trabalhador das novas doenças profissionais.

Enfim, há oportunidade para que tudo isso pode e deve ser feito nos dias de hoje. Ademais da lutas sociais em termos do embate das idéias que possam revolucionar o projeto de sociedade atual, urge implantar uma profunda reforma do Estado que implique avançar o fundo público para mais de 2/3 do total do excedente econômico, por meio da tributação dos ricos, sobretudo os detentores das novas riquezas imateriais.

Da mesma forma, a ação estatal de novo tipo requer o seu próprio empoderamento para tratar do novo contexto global controlado por somente 500 grandes grupos econômicos, responsáveis por quase 50% do Produto Interno Bruto mundial. A defesa do espaço nacional, com exploração plena de todo o potencial econômica impõe fortalecimento da iniciativa privada, com novas regras que permitam ampliar a competição, mesmo com ação estatal em setores potencializadores da sociedade pós-industrial. Este Estado está ainda por ser constituído. Somente uma nova maioria política poderá viabilizar essa complexa e necessária construção. Que o Brasil lidere esse movimento, assim como na Depressão de 1929 foi um dos protagonistas a adotar o keynesianismo avant la lettre e, por isso, permitiu ser um dos primeiros países a superá-la.

(*) Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Fonte: Carta Maior

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