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paul-krugmanOs debates econômicos raramente terminam em nocaute técnico. Mas a grande discussão política dos últimos anos entre keysenianos, para os quais os gastos do governo devem ser mantidos ou mesmo aumentados em tempos de depressão, e partidários da austeridade, que exigem cortes imediatos nos gastos, chega perto disso –pelo menos no mundo das ideias.

Hoje a posição dos partidários da austeridade implodiu: não apenas suas previsões sobre o mundo real deixaram por completo de se concretizar, como as pesquisas acadêmicas evocadas para fundamentar essa posição revelaram-se repletas de erros, omissões e estatísticas duvidosas.

Mesmo assim, duas perguntas importantes permanecem. Primeiramente, como a doutrina da austeridade pôde se tornar tão influente? E, em segundo lugar, as políticas seguidas vão mudar, agora que as premissas cruciais dos defensores da austeridade viraram material para programas de humorismo?

Em relação à primeira pergunta: a hegemonia dos defensores da austeridade em círculos influentes deve preocupar todos os que gostariam de pensar que as políticas seguidas se baseiam em provas, ou, pelo menos, são fortemente influenciadas por elas.

Afinal, os dois estudos principais que garantem a suposta justificativa intelectual da austeridade –o texto de Alberto Alesina e Silvia Ardagna sobre “austeridade expansiva” e o de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff sobre um perigoso “limiar” da dívida quando esta chega a 90% do PIB– foram fortemente criticados quase assim que vieram a público.

E os estudos não resistiram a um exame mais atento. No final de 2010, o Fundo Monetário Internacional já tinha refeito o estudo de Alesina e Ardagna com dados melhores e invertido suas conclusões, e muitos economistas levantaram perguntas fundamentais sobre o texto de Reinhart e Rogoff muito antes de tomarmos conhecimento do famoso erro de Excel cometido pelos dois autores.

Enquanto isso, acontecimentos no mundo real –a estagnação na Irlanda, o exemplo original citado para defender as vantagens da austeridade, a queda dos juros nos Estados Unidos, que supostamente enfrentava uma crise fiscal iminente– em pouco tempo jogaram por terra as previsões dos defensores da austeridade.

Mas a austeridade foi mantida, chegando a reforçar seu domínio sobre a opinião da elite. Por que?

Parte da resposta sem dúvida está no desejo generalizado de enxergar a disciplina econômica como uma história cautelar com moral –uma história sobre o excesso e suas consequências.

Gastávamos mais do que ganhávamos, reza a história, e agora estamos pagando o preço inevitável por isso. Os economistas podem se cansar de explicar que é um equívoco; que a razão pela qual temos desemprego em massa não é que gastamos demais no passado, mas que estamos gastando insuficientemente hoje, e que este problema pode e deve ser resolvido.

Não importa –muitas pessoas têm a impressão visceral de que pecamos e precisamos nos redimir pelo sofrimento; e nem argumentos econômicos, nem a observação de que as pessoas que estão sofrendo hoje não são as mesmas que pecaram durante os anos da bolha, mudam muita coisa.

Entretanto, não é uma questão apenas de emoção versus lógica. Não é possível entender a influência da doutrina da austeridade sem falar em classe social e desigualdade.

O que as pessoas querem da política econômica, afinal? Depende das pessoas a quem você faz a pergunta, ponto documentado num estudo recente dos cientistas políticos Benjamin Page, Larry Bartels e Jason Seawright.

O estudo compara as preferências políticas dos americanos comuns e as dos americanos muito ricos, e as diferenças são surpreendentes.

O americano médio está um pouco preocupado com deficits orçamentários, fato que não surpreende, em vista da enxurrada constante de matérias na mídia semeando o medo em relação ao deficit.

Já os ricos, em sua grande maioria, enxergam o deficit como o maior problema que enfrentamos. E como o deficit orçamentário deve ser reduzido? Os ricos defendem que sejam reduzidos os gastos federais com saúde e Seguridade Social –em outras palavras, os “benefícios”–, enquanto o grande público na realidade quer ver aumentar os gastos com esses programas.

Você já entendeu, com certeza: a agenda da austeridade se parece muito com uma simples expressão de preferências da classe alta, embrulhadas numa fachada de rigor acadêmico. O que o 1% mais rico da população quer torna-se o que a ciência econômica diz que devemos fazer.

A continuação da depressão favorece os interesses dos ricos? É duvidoso, pois uma economia em crescimento geralmente beneficia a quase todos.

O que é verdade, porém, é que os anos passados desde que optamos pela austeridade vêm sendo péssimos para os trabalhadores, mas não de todo ruins para os ricos, que se beneficiaram da recuperação dos lucros e dos preços das ações, ao mesmo tempo em que o desemprego de longo prazo continua. O 1% mais rico pode não querer realmente uma economia fraca, mas está se dando suficientemente bem para não ter problema em dar rédea solta a seus preconceitos.

E isso me faz indagar até que ponto fará diferença real o desabamento intelectual da posição dos defensores da austeridade. Na medida em que temos a política do 1% mais rico, será que não vamos simplesmente ver surgir novas explicações para justificar as mesmas políticas de sempre?

Espero que não; quero acreditar que ideias e evidências têm importância, pelo menos um pouco. Se não for assim, o que estou fazendo com minha vida? Mas acho que vamos ver na prática quanto cinismo se justifica.

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Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia (2008), colunista do jornal “The New York Times” e professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados.

Fonte: Folha de S. PauloPaul Krugman