“Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência.” Não estaria fora de lugar esta frase se tivesse sido dita durante a tramitação da Proposta de Emenda á Constituição (PEC) 55, que engessa gastos públicos, inclusive com saúde e educação, por 20 anos. Chamada por alguns de “AI-5 da Cidadania”, a PEC teve a aprovação em segundo turno pelo Senado nesta terça-feira (13), mesmo dia que, 48 anos atrás, era aprovado o Ato Institucional nº 5.
O AI-5 foi o ponto culminante do golpe de 1964 contra as liberdades políticas e individuais, baixado com o objetivo de institucionalizar a repressão e a violência do regime contra seus opositores. A frase, proferida em 1968 pelo então ministro do Trabalho da ditadura, Jarbas Passarinho, caberia ao Congresso de hoje, aliado a um governo sem voto, montado após um golpe jurídico-parlamentar que derrubou uma presidenta sem crime. Num dia em que pesquisas de opinião revelam que apenas 25% dos brasileiros concordam com a PEC, e em que milhares vão à ruas pelo que a emenda representará ao futuro da cidadania, o escrúpulo foi mandado às favas pela maioria do Congresso.
O regimento da Casa legislativa também foi mandado às favas. Renan Calheiros (PMDB-AL) violou a Constituição e o processo legislativo, ao abrir três sessões extraordinárias num mesmo dia, para contar prazo regimental que permitisse a votação PEC 55. Foi essa a argumentação que levou a oposição a recorrer ao Supremo Tribunal Federal – que, mais uma vez, como na ditadura, nada fez.
A data foi lembrada pelo senador Lindbergh Farias (PT-RJ) que afirmou hoje durante os debates que no mesmo dia em que o AI-5 suspendia garantias constitucionais, a PEC 55 também “decretaria a morte da Constituição Cidadã do Dr. Ulysses Guimarães”, que buscava pôr fim ao período obscuro aberto em 1964 e escancarado em 1968.
Lindbergh acusou Renan de ter rasgado a Constituição tanto em seu confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF) – por conta do episódio no se recusou a acatar decisão que pedia seu afastamento –, quanto pela forma como encaminhou a votação da PEC. “O senhor ou está se sentindo muito forte ou então deve muito ao Palácio do Planalto”, provocou.
A falta de escrúpulo também foi apontada pela senadora Gleise Hoffmann, para quem o Senado deveria estar discutindo a crise política que assola o governo Temer e seus aliados, envoltos em acusações vazadas da primeira delação da Odebrecht.
A senadora Fátima Bezerra (PT-RN) afirmou que aqueles que se acumpliciaram com o AI-5 foram os “coveiros da Democracia” e que, agora, os que apoiam a PEC 55 passarão para a história como “coveiros da Cidadania”. A parlamentar afirmou que a rejeição à proposta é de toda a sociedade, de especialistas em contas públicas, acadêmicos, representantes da Organização das Nações Unidas (ONU) e Banco Mundial, movimentos sociais e pesquisas de opinião. “Isto não acontece à toa, a proposta tem o objetivo de priorizar o que quer o mercado financeiro e pagar os juros da dívida pública em detrimento dos serviços essenciais do país.”
Governo enfraquecido
O tom irritado dos senadores prosseguiu ao longo de quase cinco horas. O senador João Capiberibe (PSB-AP), afirmou que o momento deveria ser de o Senado parar os trabalhos legislativos, suspender qualquer tipo de votação e passar a discutir em caráter prioritário a proposta que existe protocolada na Casa para a convocação de eleições diretas para presidente.
“Estamos vendo um governo cada vez mais fragilizado, um presidente da República que não tem respaldo popular e o Congresso a cada dia mais desgastado por submeter a votação medidas tão impopulares e, ao mesmo tempo, devido às últimas delações premiadas envolvendo pagamento de propina a deputados e senadores. Deveríamos é parar para discutir tudo isso. E não, insistir em votar uma medida que vai impactar na economia do país, empurrada por um governo que não tem força para isso”, afirmou.
Líderes da base aliada, como Eunício Oliveira (PMDB-CE) e Aloysio Nunes (PSDB-SP), insistiram pela votação. Também foram observados momentos de constrangimento, como o acordo firmado pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR), que ocupava a mesa, para que a sessão fosse suspensa e tivesse continuidade após a realização de uma sessão de homenagem ao ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes.
Estava tudo acertado para a suspensão quando Renan Calheiros retomou a presidência e desfez o acordo. Disse que “o combinado há muitos dias é de que a sessão seja realizada ininterruptamente”.
A expectativa é de que até o final da semana, a PEC 55 esteja promulgada. No momento, os senadores ainda apreciam duas medidas de destaque que sugerem alteração no texto.