O Ministério Público Federal (MPF), em Volta Redonda (RJ), e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro assinaram o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no último sábado (6), na Fazenda Santa Eufrásia, no município de Vassouras (RJ), com objetivo de acabar de vez com a encenação sobre a “escravidão” para turistas, estabelecendo medidas reparatórias. Na fazenda, a proprietária Elizabeth Dolson representava uma sinhá, vestida com roupas de época, e pessoas negras, vestidas como escravas, serviam os turistas que visitavam o local.
Para Almir Aguiar, secretário de Combate ao Racismo da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT) e membro da Comissão da Verdade da Escravidão Negra do Brasil, que esteve presente e assinou a TAC, a fazenda realizava um verdadeiro festival dos horrores. “Eles retratavam a população negra local como escravos para saciar a ganância dos donos da fazenda, através deste tipo de turismo, desrespeitando milhões de pessoas que foram escravizadas, que perderam suas vidas e identidades diante das brutalidades do regime escravocrata. E para piorar, a atração dos horrores constava no mapa da cultura do Rio de Janeiro”, denunciou o secretário.
A situação foi objeto de investigação no MPF, o inquérito civil público foi instaurado pelo procurador da República Júlio José Araujo (Inquérito Civil Público nº 1.30.010.000001/2017-05), após uma reportagem publicada pelo site “The Intercept Brasil”. Conforme a matéria, a proprietária também teria se manifestado da seguinte forma a uma pergunta da jornalista: “Racismo? Por causa de quê? Por que eu me visto de sinhá e tenho mucamas que se vestem de mucamas? Que isso! Não! Não faço nada racista aqui!”.
Foi apurado no inquérito a violação de direitos fundamentais na programação turística da Fazenda Santa Eufrásia, bem como a possível violação ao patrimônio histórico, tendo em vista a sua finalidade de educação e reparação simbólica de violações de direitos perpetradas no local em tempos passados.
O local é a única fazenda particular tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Rio de Janeiro (Iphan-RJ), tendo sido tombada em 1970 em razão de sua importância histórica, cultural e paisagística.
“Foi emocionante a leitura dos nomes de dez africanos e descendentes escravizados dos 162 que viviam na Fazenda em 1880. Seres humanos submetidos ao trabalho degradante e desumano próprio do sistema de exploração ao extremo do homem pelo homem”, disse Marcelo Dias, presidente da Comissão da Verdade da Escravidão Negra do Brasil.
Termo de Ajustamento de Conduta
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O TAC foi construído a partir de sugestões das comunidades quilombolas da região, do movimento negro e de professoras da Universidade Federal Fluminense e debatido na Comissão da Verdade da Escravidão Negra do Brasil
Pelo acordo que será celebrado, fica vedada, nas atividades da Fazenda Santa Eufrásia, a encenação ou a utilização de vestimentas por pessoas negras ou brancas que as caracterizem como “mucamas”, estendendo-se tal orientação aos visitantes. As recomendações valem tanto para o conteúdo divulgado no local quanto na Internet (site e redes sociais da fazenda).
Além disso, fica proibida a utilização da palavra escravo, de forma escrita e oral, devendo ser trocada pela expressão “pessoa escravizada”. “Com isso, vamos contribuir para a superação da associação da imagem do negro ao ‘escravo’ em nossa sociedade e de esclarecer que africanos e seus descendentes foram escravizados e não ‘nasceram escravos’ e que ninguém ‘descende de escravos’, tratando-se de pessoas, de homens e mulheres, de seres humanos que foram criminosa e injustamente escravizados”, explicou o procurador da República Julio José Araújo.
Além de reparar as violações aos direitos da população negra causada pela representação, para fins turísticos, o acordo com o MPF e com a Defensoria Pública visa assegurar o reconhecimento da história e cultura negra e o combate ao silenciamento dos efeitos da escravização de pessoas no Brasil, em especial na região do Vale do Café, no Estado do Rio de Janeiro.
Dentre outras obrigações, os responsáveis pela fazenda se comprometem a custear e instalar na área externa à casa, no prazo máximo de 60 dias, em local de fácil acesso e de visitação, duas placas, uma explicando a história do local e a outra com o nome das 162 pessoas escravizadas no ano de 1880 na fazenda, como dever de memória e homenagem. Outros cartazes serão afixados em locais de fácil visualização alertando sobre o crime a prática de racismo e quais canais devem ser buscados para denunciar episódios similares ao MPF. A proprietária deverá disponibilizar vídeos das comunidades negras durante as visitas e formalizará um pedido de desculpas público.
Outra medida será a confecção de 500 folhetos educativos sobre a história da comunidade cativa da Fazenda Santa Eufrásia, com divulgação do conteúdo também no site da fazenda. Para assegurar que não haverá reincidência do episódio, a gestora da Fazenda e todas as pessoas responsáveis por receber visitantes deverão, no prazo de 60 dias, passar por processo de capacitação, com carga horária de 12 horas, em curso a ser organizado e ministrado por representantes e lideranças negras da região, mediante apoio de pessoas por eles indicadas e intermediação do MPF e da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de conhecer sua história de resistência e de lutas, assim como as histórias de seus antepassados. A capacitação deverá incluir visitas da equipe da Fazenda Santa Eufrásia aos memoriais existentes em comunidades como o Quilombo São José da Serra e o jongo de Pinheiral. Em caso de descumprimento do acordo, é prevista multa diária de R$ 5 mil.