O músico e compositor Paulinho da Viola canta um samba, chamado “Foi um rio que passou em minha vida”, que fala de um amor que passou e que foi melhor que ficasse no esquecimento, ou na fraca memória do que havia acontecido para que o coração não sofresse tanto.

Porém, ah, porém, as marcas de um grande amor ficam e, de tão fortes, nos fazem perder a noção de tempo, espaço e, principalmente, de futuro. Talvez, seja melhor fingir que não aconteceu, ou que se está melhor sem aquele grande amor. No entanto, há sempre algum fantasma a “perseguir” tal fingimento.

Ora, mas por que falar de amor para um grupo que está lesionado pela LER/DORT (Lesão por Esforço Repetitivo e Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho)? Elementar! Porque este grupo é formado por amantes… amantes do trabalho bancário (muitos gostariam de estar fazendo-o até os dias de hoje). Amantes por serem úteis. Amantes por serem reconhecidos pelo que fazem. Amantes por andarem na linha. Amantes por lutar.

Ahhhh, o amor! Atravessa barreiras nunca antes imaginadas. Barreiras das pequenas indignações do dia-a-dia. Digo pequena, pois não mobiliza o bastante. E como lidar com essa indignação? Ater-se mais às tarefas, menos aos colegas, menos aos clientes, menos às famílias. É aquele sofrimento de cada dia que vai se tornando em comportamentos defensivos: cada vez mais no automático, cada vez menos no humano. Porque viver um amor reprimido é tão doloroso? Quando se quer esquecer, tem que se lembrar para esquecer. Como diz Vanessa da Mata na música “Amado”: Peço tanto a Deus para lhe esquecer, mas só de pedir, me lembro….

E quando se vive a “repressão”, o quão insustentável é ao coração. Somos como uma represa: acumula até certo ponto; passou daí, ou abrem-se as comportas, ou transborda para todos os lados, sem direção escolhida. Quem estiver na frente é levado: marido, esposa, filho, filha, amigos, pais…

Antes, as dores passavam com alguns remédios e trabalhar ainda era fisicamente viável. No entanto, quando o psicológico já não tolera mais as agressões diárias, é o momento em que o corpo fala mais do que a própria boca: as dores bloqueiam fisicamente como uma forma de dizer que o amor é doentio, que o amado banco é um saco sem fundo, doente. Talvez, o erro tenha sido amar demais. Será? Não tem como saber. O que se sabe é que o amor persiste e nunca desiste, ao menos para a mente que resiste.

Infelizmente, as práticas de gestão tornaram-se tão perversas e intensas que produzem dois tipos de trabalhadores: os que não se envolvem de maneira alguma (talvez por se interessarem somente pelo salário, talvez por uma estratégia de defesa, que vem sabe-se lá de onde, e impede o total envolvimento); e aqueles que se envolvem de corpo e alma, na busca por reconhecimento, pela utilidade e beleza de seu trabalho.

Mas e o que é a LER/Dort neste contexto? Talvez a ausência de respostas justifique a crueldade e descaso de médicos e peritos que, insensíveis, ignoram o discurso dos adoecidos e lhes suprimem os seus direitos. Mas a quem os ouve compreende que a LER é justamente a HIPERsolicitação dos que se envolvem profundamente com as responsabilidades do trabalho. E como não ser responsável? Afinal se tem filhos, família, que dependem do salário do mês! Mas será que eram só estes os mobilizadores de tamanho envolvimento no trabalho? Que doçura que era cumprir as metas, não acha?

A perversão está clara na exigência de metas cada vez mais altas. Alcançá-las era um reconhecimento, mas também um desafio. Superá-las era o quê, então? Era dar conta das demandas dos não tão dedicados? Sim! Mas também, mais um modo de ser especial, de se destacar.

Mas e o adoecimento, como explicá-lo? Você fez além do prescrito! Você estava errado! A meta não era menos? Agora, pense se todos cumprissem suas metas e fossem pra casa… o banco sobreviveria? É justamente neste conflito ético que as práticas de gestão caem em cima!

Neste final de ano, tivemos uma paralisação nacional em busca de melhores condições para os bancários. Na mídia, via-se somente os bancários mercenários e clientes desamparados. Porém, ah, porém, e o desamparo dos bancários? Logo estes que tinham que dar conta destes conflitos de realidade no posto de trabalho! E como fazer a sociedade entender tais peculiaridades do trabalho bancário se nem mesmo entre a própria categoria não há a análise destes paradoxos? “Ah, isso é normal! De boa!”. Este grupo de lesionados é a prova viva que não foi “de boa”. A greve, antes de tudo, é a prova da existência de preceitos que ferem a ética do trabalhador. Falar em ética hoje em dia… Quanto vale a sua?

E quando adoece, lá vem o bombardeio: família não sabe o que você tem; amigos somem, alguns ficam a favor do banco; o banco foge da responsabilidade e empurra para o INSS; este, por sua vez, diz que você já nasceu assim ou que está lavando louça demais, que fibromialgia é o seu problema, empurra pro CRP; que… Enfim, essa dor existe? Ou ela é clandestina? Quem vai aceitá-las? Você vai?

Falar sobre questões que tanto fazem sofrer talvez seja saída para o recomeço. Fortalece saber que não se está lutando sozinho, que alguns, até então grandes desconhecidos, se identificam nessa dor, conseguem tão bem compreendê-la. Trocar confidências de médicos, hobbies, sofrimentos físicos e psíquicos: a vontade de ficar no sofá o dia todo, de morrer ou de mandar todos para aquele lugar. É um grupo que tem sua própria identidade: lutam pelo luto e passam o luto por essa luta aqui nos grupos. A partir de um espaço de palavra, a simbolização do sofrimento.

Lutam pelo luto de um corpo doente, limitado de capacidades que antes tinham de preencher expectativas e responsabilidades; luto este que envolve toda a raiva do momento por terem dado tudo de si em busca de um ideal de si; a dor de perceber que não são insubstituíveis, ou pior, que são descartáveis; luto por um corpo que, desde antes, era limitado e que este adoecimento só mostrou que a onipotência é utópica. E agora, cadê aquele amor? Ele não esteve presente antes! O amor de antes era de ser amado. Agora, o amor de si é posto à prova, mas não pode jamais ser abandonado.

É verdade a restrição da capacidade laborativa, mas não a incapacidade de viver e de amar. A forma como encaramos as adversidades mostra realmente quem somos, mas também mostra como nossa visão era limitada. E é isso que nos torna “deficientes”, antes mesmo de LER/Dorts.

Se quisermos ver um elogio como uma crítica, assim o veremos, independente do conteúdo que foi dito, pois estávamos previamente dispostos a vê-lo desta maneira. Sendo assim, cabe a reflexão de como absorvemos nossa realidade, o jeito dos outros, a fala dos outros, as notícias…

Deixo a célebre frase: “As desgraças só são completas quando não se aprende nada com elas” e coloco, então, a reflexão sobre as “desgraças” da vida, se é que assim podemos chamá-las. Será que aprendemos algo com ela ou continuamos a ser sua escrava? Continuamos a pensar, a agir e sentir do mesmo jeito?
Não se pretende aqui respostas imediatas e nem tão pouco esgotar este tema, mas o início de uma reflexão que leva conhecer a si próprio e perceber as reais limitações. Conseguir conviver com as faltas na vida é sem dúvida o grande desafio do humano. Finalizo com uma sábia frase de Freud: “A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz”.

Artigo de Vitor Barros Rego  e Bethânia Meireles. Ele é psicólogo, Mestre em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações e acompanha no Sindicato dos Bancários de Brasília grupos de apoio para bancários lesionados por LER/Dort e afastados por transtornos psíquicos e ela é psicóloga e especialista em Psicodinâmica do Trabalho.

Fonte: SEEB – DF